O Globo, n. 32023, 10/04/2021, Mundo, p. 22

 

Novo chanceler tirou licença rara no Itamaraty

Henrique Gomes Batista

10/04/2021

 

 

SÃO PAULO — Em 2015, a construtora Andrade Gutierrez procurava um especialista em energia na América do Sul, em especial na Bolívia. Nessa época, o hoje chanceler Carlos França revia a carreira diplomática, que chegou a considerar abandonar após se decepcionar com a formulação da política externa no governo de Dilma Rousseff, onde também atuou na área de cerimonial do Planalto. Foi então que França decidiu se afastar do Itamaraty, entre 2015 e 2017, para trabalhar no escritório da empreiteira em Brasília. 
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Apesar de ser um movimento legal e visto com bons olhos por muitos embaixadores, a experiência na iniciativa privada ainda é algo raro no Itamaraty. A maioria dos 1.405 diplomatas da ativa no país não tem esta vivência.
O Ministério das Relações Exteriores sequer contabiliza o número exato de diplomatas que pedem licença para trabalhar para empresas. Este grupo é computado junto com o total de profissionais que pedem Licença para tratar de Interesses Pessoais (LIP), que inclui também diplomatas que suspendem temporariamente a carreira por motivos familiares (o mais comum é o casamento com estrangeiro sem a possibilidade de se conseguir um posto na embaixada deste país), ou estudo sem a obtenção da licença específica para tal. Mas mesmo o número total de LIPs é considerado baixo.
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Entre 2011 e 2017, foram registrados de 10 a 17 pedidos de licença por ano. Em 2018, pela primeira vez este número chegou a 20 e, no ano seguinte, a 30. O recorde de 2019, para muitos, deve-se ao início do governo de Jair Bolsonaro, que fez alguns diplomatas procurarem um "sabático". No ano passado foram 12 LIPs. Em 2021, até o fim de março, já são oito.
— Ter no Itamaraty, instituição que tem a ver com a promoção do país e suas empresas, pessoas que tiveram experiência no setor privado enriquece o ministério. São diplomatas que passam a entender melhor a lógica das empresas privadas. Isso é algo que deveria ser estimulado — opina Marcos Caramuru, ex-embaixador em Pequim e membro do conselho consultivo internacional do Cebri.
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No caso do novo chanceler, era inegável sua afinidade com América do Sul e com temas energéticos, coincidindo com o interesse da Andrade Gutierrez em expandir suas atividades para os países da região, em um período anterior à Lava-Jato. Após servir por dois períodos em La Paz, França publicou, em 2015, pela Fundação Alexandre de Gusmão, o livro “Integração elétrica Brasil-Bolívia: o encontro no rio Madeira”, versão adaptada de tese aprovada no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco.
O Itamaraty respondeu à reportagem por nota, informando que, quando atuou como diretor de Assuntos Corporativos e Negócios Estratégicos da AG S.A., holding do grupo Andrade Gutierrez, França "exercia suas funções entre Brasília e Rio de Janeiro e não tratou nem de temas de energia, nem de assuntos internacionais". O Ministério das Relações Exteriores informou ainda que sua licença "foi devidamente autorizada pela Controladoria-Geral da União (CGU), com carta patente emitida no âmbito do Sistema de Prevenção de Conflito de Interesses (SeCI) do governo federal".
Procurada, a Andrade Gutierrez, informou em nota, que "o profissional Carlos França fez parte dos quadros da empresa no período de 03/15 a 03/17, tendo participado da transformação da companhia no que diz respeito ao seu posicionamento em relação ao mercado. Transformação essa baseada em rígidos padrões éticos e normas de Compliance".
Entretanto, pessoas próximas a França, tanto atualmente no Itamaraty como durante seu período na Andrade Gutierrez, falaram ao GLOBO, sob anonimato, que o grande interesse da companhia em sua contratação envolvia projetos de hidrelétricas na região, em especial na Bolívia. “Mas posso garantir que nenhum projeto foi concluído quando ele era diretor de assuntos corporativos e negócios estratégicos para a América Latina da empresa. Ele chegou em um momento em que se buscava a internacionalização, mas isso foi suspenso pela Lava-Jato", afirmou uma pessoa que trabalhou próximo a França na companhia.
Considerado uma pessoa serena, cordata, organizada e confiável, França sempre gerou boa impressão na Andrade Gutierrez. Seu equilíbrio era visto até no lanche da tarde, onde preferia barrinhas de cereal saudável para manter a boa forma. Católico praticante, manteve na época da empresa sua frequência assídua na igreja. Conhecido no meio de lobistas em Brasília por sua capacidade de ouvir e buscar consensos, França saiu da empreiteira quando ficou claro que a empresa enfrentaria problemas mais sérios com a Justiça.
Apesar de sondagens que recebeu para continuar na área de infraestrutura — uma de suas paixões e objeto de estudos —, encerrou sua licença e voltou à diplomacia. Acabou retornando ao Planalto no governo de Michel Temer. Por uma mudança de última hora, ainda na transição de governo para Jair Bolsonaro, ficou com a chefia do cerimonial da Presidência, cargo que exerceu até ser convidado pelo presidente para ser seu assessor-chefe, em outubro de 2020. Em março, ele assumiu a chefia da diplomacia brasileira. “Não tenho dúvidas que França ganhou conhecimento e experiência neste período, ampliando seu leque de atuação, até então muito focado na questão do cerimonial”, afirmou um embaixador da ativa que pediu para não ser identificado.
Prática é comum fora do país
A LIP é, segundo o Itamaraty, “uma licença não remunerada, concedida ao servidor público com estabilidade para tratar de assuntos particulares, a critério da Administração, com duração de até 3 anos, prorrogáveis uma vez por igual período”.
O ministério lembra ainda que o período total da LIP não poderá ultrapassar 6 anos, considerando toda a vida funcional do servidor, a não ser em casos excepcionais, a serem autorizados pelo ministro de Estado. “O período em LIP não conta como tempo de serviço e, portanto, para a aposentadoria, a não ser que o servidor tenha contribuído por conta própria para o PSS (Plano de Seguridade Social do Servidor)”.
Entretanto há quem acredite que estas regras poderiam mudar. Caramuru, por exemplo, afirma que isso deveria ser incentivado, por exemplo, reduzindo a “punição” de quem vai para a iniciativa privada — como por exemplo, a regra que joga o diplomata que usou a licença no “fim da fila” das promoções.
Outros diplomatas da ativa, sob anonimato, defendem a criação de quarentenas para quem for atuar na iniciativa privada, para evitar conflitos de interesse. Um embaixador atuante no exterior afirma que este tipo de experiência na iniciativa privada deveria ser incentivada para diplomatas até o meio da carreira, quando poderia agregar conhecimento. Depois que estes profissionais atingem cargos de chefia, argumenta, “ele tem pouco a adquirir e aplicar novas visões de mundo". "Neste caso, acredito que o mais saudável é que ele se aposente e vá de vez para a iniciativa privada”, disse.
Para especialistas, algumas características dificultam a ida de diplomatas brasileiros, mesmo que por um curto intervalo, para a iniciativa privada, ao contrário do que ocorre em outros países. Além de ser uma carreira que tem relativamente bons salários, algumas vezes maiores que os da iniciativa privada, a falta de regulamentação do lobby no país atrapalha esta troca. O fato de haver poucas empresas brasileiras multinacionais dificulta ainda mais esta transição parcial, além de peculiaridades da formação dos diplomatas no Brasil.
— Outros países contratam pessoas para a diplomacia em vários estágios da carreira. É comum alguém nos EUA virar diplomata com mais de 30 anos, pessoas que já tiveram experiências diversas. No Brasil as pessoas entram muito cedo no Instituto Rio Branco, e isso acaba sendo impregnado em você, o que dificulta a troca de carreira. Há algo quase místico no Itamaraty — afirma Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV.
Favorável a experiências privadas dos diplomatas, Stuenkel afirma que, em muitos casos, o conhecimento do diplomata brasileiro é muito focado em questões menos úteis para a vida privada, como cerimonial. Ele lembra ainda que, em outros países, a experiência entre a área de relações internacionais dos governos e empresas é mais fluída:
— A diplomacia alemã, por exemplo, faz análise política pelo mundo, de graça, para as empresas alemãs, por exemplo. Isso é raro no Itamaraty, apesar do objetivo de ajudar as empresas brasileiras. Com isso, há menos contatos.