O Globo, n. 32023, 10/04/2021, Segundo caderno, p. 6

 

Os erros de um governo no combate à pandemia

André Miranda

10/04/2021

 

 

É uma trama que a gente conhece bem. “Sob total controle” enfileira os erros da administração federal no combate à pandemia da Covid-19. Vai de uma insistente negação até um elevadíssimo número de mortos. A cloroquina aparece entre a politização da tragédia e a falta de respiradores e máscaras — e o próprio governo faz campanha pelo medicamento. O lockdown é combatido com a justificativa de haver uma dicotomia entre economia e saúde. Tem um guru, que não fala coisa com coisa, mas um monte de gente aplaude. E há até uma eleição no horizonte, que parece nortear a maioria das decisões do protagonista.
A História, contudo, cobrou seu preço: Trump perdeu.
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Exibido neste sabado (10/4), às 19h, em sessão on-line, única e gratuita, pelo festival de documentários “É Tudo Verdade”, “Sob total controle” mostra como os Estados Unidos ultrapassaram os 560 mil registros de morte por Covid-19, um número recorde no mundo. O filme reconstitui o caminho do Sars-CoV-2 no país, com um olhar crítico às decisões do então presidente Donald Trump. Para chegar lá, os diretores Alex Gibney, Ophelia Harutyunyan e Suzanne Hillinger usaram entrevistas, vídeos de arquivo e narração, e até desenvolveram um kit especial de câmera que permitiu filmar em segurança em tempos de pandemia.
O Brasil é citado apenas brevemente, quando se menciona outras nações em que a doença se espalhava com velocidade na época em que o documentário foi finalizado, no terceiro trimestre de 2020, e a famosa cena aérea das covas abertas no cemitério Vila Formosa, em São Paulo, é exibida. Mas o Brasil ainda não havia se tornado o epicentro da pandemia no mundo como é hoje, com dias ultrapassando os 4 mil óbitos e mais de 345 mil registros de mortes no total. É o segundo país com mais vidas perdidas pela Covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos.
— Muita gente compara Bolsonaro a Trump, e me parece que a resposta que eles deram à pandemia foi muito parecida — diz Ophelia Harutyunyan, em entrevista por telefone. — Ambos usaram fake news para desacreditar a mídia e sugerir às pessoas que não ouvissem o que diz a ciência. Quando um presidente diz que não sabe se vai se vacinar, ele está dando um recado para as pessoas. Se agisse diferente, vidas teriam sido salvas.
Entre os muitos erros destacados, “Sob total controle” lembra que o primeiro exame criado nos Estados Unidos para detectar o coronavírus foi enviado para os laboratórios com defeito, o que atrasou em quase um mês a testagem massiva da doença. Fala que a força-tarefa montada para combater a pandemia, primeiro comandada pelo então secretário de Saúde Alex Azar e depois pelo vice-presidente Mike Pence, tinha mais do que o dobro de políticos e representantes da indústria farmacêutica em comparação com cientistas.
O filme também sugere que a falta de coordenação do governo federal com os estados fez com que os preços de equipamentos médicos subissem absurdamente. Uma entrevista emblemática do governador de Nova York, Andrew Cuomo, é utilizada: “É como estar no eBay com outros estados dando lances por respiradores. E de repente aparece a Fema dando um lance. A Fema estava aumentando o preço”. Fema é a Federal Emergency Management Agency, órgão do governo que atua em crises, desastres e demais emergências nacionais.
— Nós moramos na região de Nova York, então vivemos os piores dias de pandemia aqui. Vimos como as mortes aumentavam, como não havia vagas nos hospitais, como as sirenes tocavam o dia todo levando doentes — lembra Ophelia. — E ficou muito claro que a resposta do governo não era a melhor, daí sentimos a necessidade de entender o que havia sido feito de errado.
Cabo eleitoral
Evidentemente a data de lançamento de um filme como “Sob total controle” não é escolhida na moeda, sobretudo num ano de eleição. O pleito, em que o republicano Trump tentou um novo mandato e saiu derrotado pelo democrata Joe Biden, ocorreu em 3 de novembro. Já o documentário estreou nos Estados Unidos em serviços de streaming em 13 de outubro, três semanas antes, a tempo de assistir, recomendar no grupo de “zap” da família e pensar um pouco sobre o voto.
E não é nada incomum ter o cinema como cabo eleitoral num país em que um ator coadjuvante já foi presidente e até foi reeleito — ao saber que Ronald Reagan concorreria ao governo da Califórnia em 1966, Jack Warner, o dono do estúdio com seu sobrenome, teria dito: “Não, não. É James Stewart para governador, e Reagan para seu melhor amigo”.
Gibney, um documentarista prolífero que tem um Oscar no currículo por “Um táxi na escuridão” (2007), sabe bem do efeito que o cinema pode ter no público. Tanto que também estreou na HBO, poucas semanas antes da eleição de 2020, o documentário “Agents of Chaos”, em que investiga a interferência russa na vitória de Trump de 2016.
— Desde o início nosso desejo foi exibir “Sob total controle” antes da eleição. As pessoas tinham o direito de saber para poderem escolher melhor — diz Ophelia. — E nós procuramos a Casa Branca e os órgãos de saúde do governo para entrevistas, mas nunca nem responderam. Sabemos que o governo trabalhou para silenciar muita gente. As pessoas tinham medo de sofrer represália. Precisávamos mostrar isso antes da eleição. Espero que o brasileiros tenham a mesma oportunidade de entender como seu governo agiu.