O Globo, n. 32024, 11/04/2021, Economia, p. 30

 

Falhas técnicas e caos político atam o nó do Orçamento

Manoel Ventura

11/04/2021

 

 

BRASÍLIA — O Orçamento de 2021 é descrito por técnicos experientes da equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, como o mais difícil, duro e “caótico” de ser feito e executado em anos.
O texto deveria ter sido aprovado em dezembro, como em anos anteriores. Mas esse processo atrasou por uma sequência de erros que vão desde decisões técnicas que se mostraram equivocadas, desarticulação entre membros do próprio governo na hora de negociar com o Congresso e uma guerra de versões que tomou conta de Brasília para responder a uma pergunta: de quem é a culpa pela proposta orçamentária inexequível?
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Até o fim da semana passada, não havia uma resposta clara, mas a reconstituição dos fatos mostra que o texto que gerou tanta confusão é resultado de uma soma de erros e circunstâncias que começaram a se acumular ainda no ano passado, quando o país e o mundo mergulharam na maior crise sanitária da História recente.
A saída defendida pelo ministério é vetar todas as emendas do relator — infladas em R$ 26,4 bilhões, chegando a R$ 29 bilhões —, recompor os gastos obrigatórios e devolver o restante para o Congresso. A solução é rejeitada por parte do Palácio do Planalto, que defende que tudo seja sancionado.
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), quer que um acordo para ampliar as emendas em R$ 16,5 bilhões, fechado em fevereiro, seja cumprido. E o Congresso ameaça retaliar se o governo não cumprir.
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Nos últimos dias, o presidente Jair Bolsonaro passou a atuar diretamente para resolver o impasse. Uma solução que ganhou força foi vetar parcialmente as emendas. A cicatriz que a crise deixará na relação de Guedes com o Congresso é incerta e vai depender do tamanho do corte que o governo fizer.
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O ORÇAMENTO SEM META
Enquanto discutiam as medidas urgentes contra os efeitos econômicos da recém-declarada pandemia de Covid-19, em abril do ano passado, os técnicos da equipe econômica liderados pelos ministro Paulo Guedes precisaram começar a pensar no Orçamento deste ano.
Sem qualquer perspectiva sobre o futuro, a decisão foi enviar ao Congresso um projeto sem definir qual deveria ser o resultado para as contas públicas no ano seguinte, algo inédito.
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Depois de pressão do Tribunal de Contas da União (TCU), o governo acabou recuando e propondo um rombo de R$ 247 bilhões como meta. Mas a falta de clareza sobre a arrecadação e um teto de gastos — regra que limita o crescimento das despesas da União — cada vez mais pressionando marcaram desde o início o desenho do Orçamento.
O TETO BAIXO
Em meados de 2020, o Ministério da Economia começou a receber uma chuva de ofícios, ligações e e-mails de toda a Esplanada dos Ministérios. Eram pedidos das pastas por mais verbas para suas áreas. A resposta era a mesma: não há espaço no Orçamento.
A margem de manobra estreita se deu por uma questão técnica da regra que estabeleceu o limite de gastos em 2016. O teto foi corrigido em 2,13% de 2020 para 2021. Muito pouco para acomodar todos os interesses em Brasília.
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Os ministros com mais traquejo político sabem que uma solução para esse tipo de problema é buscar emendas dos parlamentares — o que acabou estourando no colo da equipe econômica meses depois.
Com pouco espaço para investimento, com mais recursos reservados para os militares e sem considerar qualquer necessidade de gastar mais para conter a Covid-19 em 2021, o Orçamento deste ano foi encaminhado ao Congresso em agosto de 2020.
AS ELEIÇÕES NO CAMINHO
No segundo semestre de 2020, quem ligasse para integrantes do time de Guedes para saber sobre o andamento da agenda econômica recebia a mesma resposta: está tudo parado.
O motivo eram, segundo integrantes da pasta, as eleições municipais e, especialmente, a disputa pelo comando da Câmara. O ambiente hostil dificultou o avanço do Orçamento no Legislativo. A principal consequência foi que a Comissão Mista do Orçamento (CMO) sequer chegou a ser instalada em 2020.
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No colegiado — o primeiro passo para a proposta orçamentária tramitar —, os grupos rivais de Rodrigo Maia (DEM-RJ) e Arthur Lira (PP-AL)protagonizaram a queda de braço que antecipou a disputa pelo controle da Câmara.
A equipe econômica se viu de mãos atadas. Em reuniões em setembro e outubro, os técnicos da pasta reconheceram que dificilmente qualquer proposta econômica iria avançar, assim como o próprio Orçamento, enquanto Maia e Guedes discutiam publicamente a responsabilidade pelo atraso na agenda. Não havia um mínimo de consenso.
Em uma reunião no gabinete do Ministério da Economia realizada poucos dias antes do Natal, aliados de Maia chegaram a propor a integrantes da equipe econômica um acordo: apoiar a proposta de reforma tributária do Congresso em troca da aprovação da autonomia do Banco Central. Guedes não topou. Sem diálogo, nada avançou.
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O ERRO TÉCNICO
O impasse na CMO empurrou a discussão sobre o Orçamento para depois de fevereiro, após as eleições para as presidências do Congresso. E depois de uma disparada nos índices de inflação.
O repique inflacionário observado no fim de 2020 obrigou o governo a reajustar as aposentadorias e o salário mínimo muito acima das previsões iniciais. Os gastos obrigatórios subiram mais que o teto. O resultado: seria necessário cortar investimentos.
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Quando é preciso fazer um ajuste grande no Orçamento ainda não aprovado, a praxe é encaminhar a chamada “mensagem modificativa”, uma alteração com o carimbo do presidente da República. Não foi o que aconteceu.
Prevaleceu o entendimento do secretário de Fazenda, Waldery Rodrigues Júnior, de que esse processo levaria ao menos 30 dias, porque exigiria rodar modelos complexos sobre um Orçamento com milhares de páginas.
O governo optou por indicar aos parlamentares a necessidade de cortar R$ 17 bilhões para adequar o Orçamento aos novos parâmetros. O Congresso ignorou.
O ACORDO PELA PEC
No início de março, durante uma reunião de líderes do Senado, o senador Eduardo Braga (MDB-AM) sugeriu retirar o Bolsa Família do teto de gastos. A medida seria inserida na proposta que permitiu a renovação do auxílio emergencial e estabeleceu regras para controle de despesas.
 Havia por trás disso a intenção de aumentar as emendas parlamentares. Bolsonaro chegou a dar aval à ideia. Guedes reclamou, o presidente recuou, e o Senado também.
Mas o ministro topou um acordo que agora está sendo cobrado por Lira e pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG): elevar em R$ 16,5 bilhões o valor das emendas parlamentares logo após a aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC) Emergencial.
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O aumento também tinha por trás a necessidade de cumprir acordos que fizeram parte das campanhas de Lira e Pacheco.
As emendas seriam colocadas em nome do relator, Márcio Bittar (MDB-AC), mas indicadas por aliados do governo. O ministério mais beneficiado foi o do Desenvolvimento Regional, chefiado por Rogério Marinho, desafeto de Guedes.
Pressionado por todos os lados, Bittar se reuniu com assessores do então ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. No quarto andar do Palácio do Planalto, as equipes de Bittar e Ramos escreveram o relatório da discórdia.
As emendas do relator dispararam e subiram R$ 26,4 bilhões. Para isso, Bittar cortou recursos da Previdência, do seguro-desemprego e do abono salarial.
Confusão formada: o Orçamento não ajustado pelo governo teve as despesas obrigatórias subestimadas. Tornou-se inexequível.
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Integrantes da equipe econômica se queixam do sumiço de Bittar na reta final da votação do Orçamento. Segundo relatos, o senador chegou a deixar de atender telefonemas de auxiliares de Guedes para discutir a proposta.
É essa a narrativa que fontes próximas a Guedes têm passado nos bastidores para afirmar que foram surpreendidos com o aumento considerado excessivo no volume de emendas.
O BECO SEM SAÍDA
A equipe técnica do Ministério da Economia fez as contas e concluiu que seria necessário contingenciar (bloquear recursos) mais de R$ 30 bilhões para garantir os pagamentos dos gastos obrigatórios. Um corte dessa magnitude pode paralisar a máquina pública.
A sanção do Orçamento então se transformou numa crise. Numa reunião tensa, Bittar aceitou devolver R$ 10 bilhões, valor considerado baixo por Guedes. No encontro, Lira foi o primeiro a falar, dizendo que a Câmara cumpriu sua parte do acordo.
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Ramos afirmou que o Executivo também tinha feito tudo certo. Todos então se voltaram para Bittar e afirmaram que o problema foi no Senado, segundo um dos presentes. Inicialmente, Bittar ofereceu devolver R$ 6 bilhões em emendas.
O valor de R$ 10 bilhões só foi alcançado depois de mais pressões. No fim, o relator saiu chateado do encontro, antes mesmo do término da reunião, alegando ter outro compromisso.