O Globo, n. 32024, 11/04/2021, Mundo, p. 35

 

Entrevista – Steven Levitsky: “a democracia sobrevive porque todos são fracos”

Steven Levitsky

Janaína Figueiredo

11/04/2021

 

 

Quando a pandemia chegou à América Latina, no primeiro trimestre de 2020, analistas alertaram para o risco de enfraquecimento dos regimes democráticos. Pouco mais de um ano depois, Steven Levitsky, professor de Harvard e coautor de “Como as democracias morrem”, assegura que a democracia sobreviveu, mas faz um alerta: "Alto nível de descontentamento social, desconfiança em relação a governos democráticos, rendimentos econômicos magros, tudo isso pode levar, no médio prazo, a aventuras autoritárias". De olho nas eleições presidenciais no Peru e Equador, o professor americano afirmou, em entrevista ao GLOBO, que em ambos países a democracia é hoje de baixa qualidade.
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No Peru, nenhum dos candidatos ultrapassa 10% das intenções de voto. Existe uma crise generalizada da classe política peruana?
Não existe crise dos partidos políticos peruanos, eles estão mortos há muitos anos. Eu não falaria em falta de credibilidade da classe política, porque não existe classe política. Não existem partidos, nem políticos de carreira. Há muitos anos, a política peruana é dominada por novatos, por outsiders, figuras que fazem dinheiro e fama em outras carreiras, e depois pulam para a política. Os partidos colapsaram há 30 anos e nunca mais foram reconstituídos. A política está muito fragmentada, e como todos são novatos que não durarão mais de cinco anos em nada, porque não existe reeleição de nada no Peru, os partidos são tão fracos que não têm candidatos próprios para o Congresso. O que eles fazem? Vendem lugares em suas listas. E os que compram são empresários que querem chegar ao Congresso para ganhar dinheiro. Vão ao Congresso para fazer negócios. Se não me engano, 50% do Congresso atual está sendo investigado por supostos subornos. Os analistas peruanos costumam culpar os próprios peruanos por elegerem mal seus líderes, mas o problema é de oferta. A oferta de hoje é uma verdadeira porcaria.
Essa crise nasceu com Alberto Fujimori (1990-2000)?
Começou da década de 80, com a hiperinflação, a guerrilha do Sendero Luminoso, entre outras coisas. Colapsaram os partidos tradicionais e Fujimori, diferentemente de Fernando Collor, eleito na mesma época no Brasil, teve muito êxito. No Brasil, a queda de Collor fortaleceu os partidos políticos, mas no Peru, não. O outsider autoritário venceu e foi bem sucedido. A partir da década de 90, morrem os partidos.
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Como o senhor vê hoje a democracia peruana?
A democracia peruana, apesar de todas as suas limitações, sobreviveu. É uma democracia de baixíssima qualidade, tem instituições muito frágeis, é uma democracia, eu diria, por "default". Sobreviveu por duas razões: a economia teve anos muito bons, e todos são igualmente frágeis. Não existe força política capaz de consolidar-se no poder. No Peru não temos um Rafael Correa (ex-presidente do Equador), um Movimento ao Socialismo (Mas, partido governista na Bolívia), um chavismo, uma força hegemônica. Os militares tampouco têm essa força e, pela extrema fraqueza de todos, a democracia sobrevive. Não é uma grande receita, mas não morreu.
No Equador, que hoje elegerá um novo presidente, a influência e poder de Correa são uma ameaça para a democracia?
O correismo é uma força dominada obviamente por Correa, e sabemos que Correa é uma figura autoritária. No melhor dos casos, o Equador poderia se tornar algo parecido à Bolívia de hoje. O correismo, se vencer, não terá o mesmo poder que teve há dez anos. Não terá um presidente com 70% de apovação, não viverá um boom econômico com preços altos das commodities, não terá maioria no Parlamento. Esse equilíbrio de poder impedirá o correrismo de governar como antes. Além disso, imagino que surgirão tensões entre Correa e (Andrés) Arauz (candidato do correismo no segundo turno). É sempre complicado ter um candidato que pretende-se transformar em marionete. O correismo, portanto, estará mais fraco, mais impopular e mais dividido. Nesse cenário, a democracia poderia sobreviver, como no Peru, por default.
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No início da pandemia, muitos analistas alertaram para o risco de governos de tendência autoritária aproveitarem o momento para limitar a democracia na região. Qual é o balanço hoje?
No curto prazo, as consequências não foram tão devastadoras para a democracia. Obviamente continuaram sendo autoritários os governos da Venezuela, Nicarágua, mas já eram autoritários, não consolidaram seu poder durante a crise. A democracia sobreviveu. Poucos líderes tentaram usar a Covid-19 para fortalecer seus projetos de poder. Presidentes como Bolsonaro e López Obrador (México) não fizeram nada. Poderiam ter usado mais o poder de seus governos para responder, e não o fizeram, provocando consequências nefastas para seus países. No médio prazo, porém, estaremos diante um período de crise fiscal dura, crescentes desigualdades e demandas sociais, e pobre rendimento dos governos, com algumas exceções como Chile e Uruguai. Não haverá dinheiro, veremos retrocessos sociais e atrasos em matéria sanitária, por exemplo com a vacinação. Devemos esperar rendimentos entre medíocres e pobres dos governos da região nos próximos tempos. Vários anos assim levarão a altos níveis de descontentamento social, e esse será um desafio para a democracia. Não morreu no curto prazo, mas me preocupa o médio prazo.
Essa deterioração generalizada pode abrir espaço para aventuras autoritárias?
Alto nível de descontentamento social, desconfiança em relação a governos democráticos, rendimento econômico magro, tudo isso pode levar a aventuras autoritárias, outsides, militares. Teremos anos difíceis.