O Estado de São Paulo, n. 46475, 14/01/2021. Espaço Aberto, p. A2

Pela união das rádios das universidades públicas
Eugênio Bucci 
14/01/2021



No artigo 2.º do Decreto n.º 6.283, de 25 de janeiro de 1934, que criou a Universidade de São Paulo, Armando de Salles Oliveira, então interventor federal no Estado, estabeleceu os "fins" da nova instituição:

"a) promover, pela pesquisa, o progresso da ciência;

b) transmitir pelo ensino, conhecimentos que enriqueçam ou desenvolvam o espírito, ou sejam úteis à vida;

c) formar especialistas em todos os ramos de cultura, e técnicos e profissionais em todas as profissões de base científica ou artística;

d) realizar a obra social de vulgarização das ciências, das letras e das artes, por meio de cursos sintéticos, conferências, palestras, difusão pelo rádio, filmes científicos e congêneres".

Nos quatro "fins" do velho decreto encontramos a conjugação de pesquisa, ensino e extensão, o tripé que finca raízes no pensamento de Wilhelm von Humboldt (17671835) e inspira universidades do mundo todo. Para Humboldt, ensino e pesquisa são indissociáveis. A extensão – palavra que no jargão acadêmico designa as relações da comunidade universitária com a sociedade para expandir o conhecimento – veio como consequência lógica e civilizatória: universidades ilhadas não têm sentido cultural, ético, político, filosófico, artístico ou científico.

Por aí podemos entender por que o decreto de Salles Oliveira determinou que a USP realize "a obra social da vulgarização das ciências, das letras e das artes" por meios diversos, incluído o rádio. Se as pesquisas acadêmicas não se fazem conhecer pela sociedade, nada feito. É por isso que as entidades que financiam pesquisas, como a Fapesp, valorizam tanto o que hoje chamamos de "divulgação científica" e na década de 1930 atendia pelo nome de "vulgarização". Não basta estudar na biblioteca, experimentar no laboratório e ensinar na sala de aula, a universidade depende de compartilhar o que pensa com a sociedade. Nesse processo ela aprende tanto quanto ensina. Em suma, comunicar é parte essencial do progresso da ciência e do cultivo das letras e das artes.

Universidades que não se comunicam não são apenas omissas, são auxiliares involuntárias das forças que nos aprisionam à ignorância. Pesquisadores que não falam com jornalistas e não conversam com o público não estão apenas enclausurados, contribuem ativamente para o isolamento das instituições que os empregam e para a manutenção do obscurantismo.

Quando a universidade não se comunica, a sociedade que a sustenta adoece – e isso não é mera metáfora, sobretudo em tempos de pandemia. Nos países onde as autoridades e os pesquisadores conseguiram se comunicar com clareza, honestidade e transparência, a covid-19 avançou menos. Nos países onde os governos centrais se pautaram pelo negacionismo e pelo fanatismo, como os Estados Unidos e o Brasil, a doença devastou mais vidas.

No caso brasileiro, o quadro teria sido outro se as universidades públicas – pelo menos as estaduais paulistas (USP, Unesp e Unicamp) e as federais – fossem mais eficientes em escutar e orientar a população. São elas as que mais desenvolvem pesquisas, deveriam ser elas as principais fontes de esclarecimento. Desgraçadamente, não são. Hoje as redes sociais devotadas a propagar os maus exemplos do presidente da República de sabotar o distanciamento e o uso de máscaras têm mais seguidores que as estruturas de comunicação ligadas ao ensino superior. Uma pena.

Não tinha de ser assim. Isso poderia mudar – e sem custos. Bastaria que os reitores se reunissem e criassem, a partir dos equipamentos e das equipes já existentes, uma aliança de emissoras de rádio e de outros serviços de comunicação social de que já dispõem. A aliança daria uma potência incomparavelmente superior à comunicação das universidades públicas.

Rádios não faltam. Segundo mapeamento realizado pelos professores Marcelo Kischinhevsky (UFRJ), uma das maiores lideranças das rádios universitárias brasileiras, e Izani Mustafá (UFMA), as instituições de ensino superior contam com 69 emissoras em FM, outras seis em AM e mais 33 web rádios. A maioria delas está ligada às entidades públicas. Por que essas, ao menos essas, não se unem?

Não teriam nada a perder. A aliança de rádios universitárias públicas não teria de funcionar como as redes comerciais, que operam com grades fixas (para tornar viável a veiculação de anúncios em escala nacional) e com programações centralizadas. Em vez disso, poderia seguir outros modelos, como a National Public Radio (NPR), dos Estados Unidos, em que há noticiários e programas compartilhados, mas cada estação mantém sua identidade. As universidades poderiam ainda montar equipes comuns para a criação de conteúdos especiais, o que traria ganhos de qualidade sem ferir a autonomia de cada integrante da aliança.

Vale repetir: tudo isso pode ser feito sem nenhum investimento adicional. As emissoras e as equipes já estão aí. Só falta o comprometimento dos reitores. Num país acometido de covid-19, de intolerância e de desinformação crônica, não é pedir muito.

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP