O Estado de São Paulo, n. 46478, 17/01/2021. Metrópole, p. A11

AM sugere abrir valas no interior e juiz obriga envio imediato de oxigênio
Liege Albuquerque
João Prata
17/01/2021



Sentença diz que se Estado não reforçar estoque do hospital da cidade de Itacoatiara, ao menos 77 pacientes podem morrer de insuficiência respiratória; secretária deSaúde relata mortes de bebês em grávidas com a covid. Sem verba, prefeitos tentam comprar insumo no exterior

O governo do Amazonas orientou uma prefeitura do interior do Estado a abrir valas para enterrar seus mortos por não ter previsão de chegada de cilindros de oxigênio em nenhuma cidade do interior. Esta orientação foi citada ontem pelo Ministério Público Estadual, que entrou com uma ação civil pública para obrigar o Estado a enviar oxigênio para o município de Itacoatiara, a 269 quilômetros de Manaus. A Justiça acatou o pedido.

“Se o Estado não enviar o oxigênio ao hospital local de Itacoatiara em quantidade suficiente, teremos a morte de pelo menos 77 pessoas simultaneamente por insuficiência respiratória, devido à falta do material”, afirmou o juiz Rafael Almeida Cró Brito. O prazo dado foi de 12 horas e a multa é de R$ 20 mil por hora de descumprimento.

Segundo o MP, o secretário de Interior da Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas, Cássio Espírito Santo, chegou a oferecer câmaras frigoríficas ao prefeito, Mario Jorge Abrahim, orientando a abrir valas no cemitério local, uma vez que não há previsão de fornecimento de oxigênio para o município.

Em nota, a Secretaria de Estado de Saúde disse que o “governo está empreendendo todos os esforços, com auxílio do governo federal, para equacionar as dificuldades encontradas na logística de abastecimento de oxigênio nas unidades de saúde da rede estadual da capital e interior”. Afirmou também que “as equipes de saúde estão monitorando os níveis de abastecimento em todas as unidades para suprir de imediato aquelas que entram em estado mais crítico”, mas não disse quando atenderia à decisão da Justiça.

Dos 61 municípios do interior, apenas 11 têm hospitais e os outros contam somente com postos de saúde. Nenhum dos hospitais do interior tem leito de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Segundo a promotora de Itacoatiara, Marcelle Arruda, ontem havia mais de 70 pacientes com covid-19 no Hospital José Mendes, o único da cidade, recebendo oxigênio. “Ontem (sexta) quatro foram a óbito porque faltou oxigênio e tememos que todos possam morrer entre hoje (sábado) e amanhã (domingo) se não chegar oxigênio”, disse. A demanda atual é de 150 cilindros por dia. Metade estava em uso, o resto estava vazio.

Rogéria Lima, médica e secretária de Saúde de Itacoatiara, afirmou que ontem o número de mortes já tinha subido para sete. “Estamos lutando aqui para manter as pessoas vivas. Somos uma cidade com população de cem mil pessoas, polo para outros cinco municípios. Nosso hospital tem 93 leitos para covid. Não temos estrutura para UTI. Estamos lotados. Temos um caminhão tanque com capacidade para 350 metros cúbicos de oxigênio. Desde o dia 13 não é abastecido”, disse.

Segundo ela, um tanque desses dura normalmente 24 horas. O último tinha acabado na noite de sexta. O governo do Estado mandou 40 cilindros na manhã de sexta e outros 50 foram doados por empresários, mas já tinham acabado ontem.

“Estamos fazendo um verdadeiro milagre. Temos tomado todo cuidado para evitar qualquer desperdício. Com os pacientes que não estão tão grave, temos feito fisioterapia respiratória. Aqui na região não tem cilindro para comprar. Ficamos a 266 quilômetros de Manaus. Um caminhão de oxigênio vai demorar seis horas para chegar até aqui.

Mas a distribuição tem ficado na capital e nas proximidades, não tem chegado até aqui”, relatou.

Rogéria disse que o prefeito está tentando comprar uma usina de oxigênio, mas a expectativa é que leve dez dias para construir e deve custar em torno de R$ 500 mil, recurso que ela diz que a cidade não tem. “Mas também não aguentamos mais ver os pacientes sofrendo. Estamos há 48 horas sem dormir. São enfermeiros, médicos e fisioterapeutas incansáveis. Nossa missão é salvar vidas”, disse.

“Estou em desespero. Pacientes chegam com saturação de 40 (o normal é 100). Estou com uma grávida de 21 semanas, com covid, aguardando há dois dias remoção por causa da gravidez de alto risco. Temos visto muitos óbitos de bebês em gestantes com covid. Muito triste”, lamentou. “Quero que Itacoatiara e todo o interior recebam oxigênio. Ninguém merece morrer querendo respirar.”

Urgência. Todas as promotorias das comarcas do interior entraram ontem com ações. “É urgente que parte das doações ou compra de oxigênio do governo do Estado seja para o interior também. Há seres humanos morrendo aqui e sem esperança alguma”, complementou a promotora Lilian Almeida, de Macapuru, a 100 km de Manaus. Segundo ela, a demanda diária atual é de 160 cilindros por dia, e ontem só havia 44.

Em Parintins, a 466 km de Manaus, a situação era parecida. Na sexta, o prefeito da cidade anunciou que amanhã devem começar a chegar equipamentos da Alemanha comprados pela prefeitura para montar uma usina de oxigênio, que será feita no único hospital público da cidade, Jofre Cohen. A irmã do comerciante Julio Pereira, de Parintins, estava internada havia cinco dias no Jofre. “Estão revezando o cilindro de oxigênio nela, não dá para nada, é desesperador. A gente vê a campanha ‘Ore por Manaus’, mas é para orar pelo Amazonas, a vida do interiorano não vale menos.”

A promotora de Parintins, Marina Campos Maciel, pretendia entrar ainda ontem com uma ação civil pública pedindo, além de oxigênio, prioridade para a remoção de pacientes para a capital, para de lá também tentarem ir para outros Estados.

“Sabemos que o que está chegando do governo federal ou de doações não é suficiente nem para Manaus, mas é preciso dividir com o interior”, disse. Segundo ela, 104 pacientes estavam internados por causa da covid com necessidade de oxigênio no hospital. “Cinco foram entubadas. Para essas, um segundo sem oxigênio é morte imediata.”

Sem ar

R$ 20 mil

por hora foi a multa estabelecida pela Justiça do Amazonas ao governo do Estado se não enviar oxigênio para Itacoatiara, que estava sem o insumo e com mais de 70 pessoas em risco.