O Globo, n. 32021, 08/04/2021, Rio, p. 14
O último ato
Rafael Nascimento de Souza
08/04/2021
Perto do fim. Desembargadores e deputados do Tribunal Especial Misto interrogaram ontem o governador afastado Wilson Witzel e o ex-secretário de Saúde Edmar Santos, sobre as denúncias de desvios em meio à pandemia. O capítulo final do processo pode ser o impeachment de Witzel. O interrogatório começou de forma inusitada. Edmar falou protegido por um biombo.
Apedido de sua defesa, o ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), decidiu que ele poderia ser ouvido reservadamente. Foi assim, sob o impacto dessa reviravolta, que teve início a sessão em que ele reafirmou as denúncias contra Witzel. Preso em julho do ano passado, o ex-secretário foi solto em agosto após fazer um acordo de delação premiada.
Depois dele, Witzelfoi ouvido. Antes, no entanto, o ex juiz federal, que abandonou a carreira para ser governador do Rio, tentou adiar o depoimento, soba alegação de que divergia da tese da sua defesa. Ele também disse que não poderia pagar outros advogados porque “está exaurido emocionalmente e financeiramente”. O adiamento não foi aceito, e dois advogados foram convocados pelo presidente do tribunal, desembargador Henrique Figueira, para acompanhá-lo. Logo que começou afalar, no início datar de, Witzel chorou:
—Eu não largueia magistratura para ser ladrão. Oque estão fazendo co maminha família é cruel—disse Witzel, atribuindo ocasoà perseguição política em decorrência das investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2018, e por ser um dos primeiros governadores do país a defender medidas de restrição contra o coronavírus.
Tanto a manobra de Edmar para não ser filmado e a de Witzel, que tentou o adiamento, foram criticadas pelos deputados que fazem parte do julgamento.
COLCHA VERMELHA
Fora do script, a chegada de Edmar para depor coberto por uma colcha vermelha carregada por seguranças do Tribunal de Justiça foi um capítulo à parte. Por volta das 10h15, o desembargador Figueira pediu que fotógrafos e cinegrafistas deixassem o local. O ex-secretário entrou escondido sob uma“cabaninha” até chegar a um biombo de madeira. Sem grandes revelações novas, Edmar, que foi ouvido por cerca de duas horas, voltou a dizer que Witzel receberia 20% de propina e que chegou a alertá-lo sobre um aspecto importante que poderia incriminá-lo. Ele teria desaconselhado o então governadora recontratara Unir Saúde —que estava impedida de prestar serviço ao estado por irregularidades — porque “seria batom na cueca”. Mesmo assim, Witzel, de acordo com ele, assinou o documento que, de fato, reabilitou aOS, que pôde ser contratada. Ele ainda acusou Witzel de ter pedido que intermediasse duas licitações que beneficiariam o empresário Gothardo Netto, preso no ano passado, que já foi prefeito de Volta Redonda.
Dirigindo-se ao Witzel, Edmar foi contundente:
—O senhor me pediu para requalificara Unir. Eu disse que aquilo seria batom na cueca do senhor, pois havia corrupção e irregularidades, motivos pelos quais eu a tinha desqualificado.
Na operação em que foi preso, agentes também encontraram cerca de R$ 8,5 milhões em espécie em endereços que seriam ligados a Edmar. Apesar de admitir que teriam lhe oferecido uma propina de 30%, o ex-secretário afirmou que nunca“viu acordo dinheiro ”. Segundo ele, além de Witzel, o pastor Everaldo Dias Pereira, presidente do PSC, partido do governador afastado, e o empresário Édson Torres, ficariam com 20%. Ele acrescentou que nenhum contrato com OSs do estado funciona dentro da legalidade.
Witzelpe diu e foi autorizado afazer perguntas diretamente ao antigo subordinado. Entre ume outro questionamento, Edmar falou ao governador afastado sobre as pressões que sofreu por propinas por parte de Everaldo e Édson Torres e que teria lhe avisado:
—Todas as OSs pagam propina. Não existe nenhuma que trabalhe de forma lícita. Eu avisei duas vezes ao senhor que o pastor Everaldo e Édson Torres estavam passando dos limites, o que comprometeria o funcionamento dos hospitais. E o senhor disse que ia falar com eles.
AMBIÇÃO POLÍTICA
Questionado pelo deputado Luiz Paulo (Cidadania) sobre quem teria escolhido o Iabas para gerenciar os hospitais de campanha — pelo contrato original, oito unidades custariam mais de R$ 700 milhões —, Edmar Santos não soube responder. Durante todo o tempo, reafirmou que sua intenção era auditar os contratos da secretaria, junto com o então controlador-geral do estado, delegado Bernardo Barbosa. Mas Barbosa terias ido afastado porque, nas palavras doe x-sec retá rio,Witzel não queria que ele fosse o Moro do Rio (menção ao ex-juiz Sérgio Moro, que comandou a Lava-Jato e foi ministro da Justiça do presidente Jair Bolsonaro). Na opinião dele, Witzel queria faturar “politicamente” com os hospitais após saber que o governador de São Paulo, João Doria, construiria unidades para o tratamento da Covid-19.
Sobre outro envolvido no escândalo, o ex-subsecretário de Saúde Gabriell Neves, ele disse que o conheceu quando trabalharam juntos no Hospital Pedro Ernesto. No fim da noite de ontem, Witzel ainda era interrogado. O tribunal, agora, abrirá dez dias para as alegações finais da acusação e mais dez dias para as da defesa. Só então o julgamento será marcado para decidir sobre eventual cassação do mandato e dos direitos políticos. Para isso, serão necessários dois terços dos votos dos dez integrantes do tribunal misto.