O Estado de São Paulo, n. 46480, 19/01/2021. Política, p. A4

Forças definem democracia ou ditadura, diz Bolsonaro
19/01/2021



Executivo. A apoiadores, presidente recorre a retórica envolvendo militares em meio às críticas ao atraso na distribuição de vacinas no País; declaração é rechaçada no Congresso

Sob pressão política diante do atraso na distribuição de vacinas contra a covid-19, o presidente Jair Bolsonaro mandou ontem recados a seus críticos e afirmou que as Forças Armadas são as responsáveis por decidir se há democracia ou ditadura em um país. Depois da derrota sofrida para o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que deu a largada na vacinação, e dos problemas para fazer o imunizante chegar aos Estados, Bolsonaro elogiou as Forças Armadas que, na sua avaliação, foram "sucateadas" na esteira de uma estratégia para adotar o socialismo no Brasil.

"Quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas. Não tem ditadura onde as Forças Armadas não a apoiam", afirmou o presidente, em conversa com apoiadores, no Palácio da Alvorada. Candidato a novo mandato, em 2022, Bolsonaro sugeriu, ainda, que a situação pode mudar, dependendo do resultado da disputa.

As declarações repercutiram mal. O tom ideológico do presidente ocorre no momento em que aumentam protestos contra o governo, como panelaços, sua popularidade cai nas redes sociais e há pressão para o impeachment. "No Brasil, temos liberdade ainda. Se nós não reconhecermos o valor desses homens e mulheres que estão lá, tudo pode mudar. (...) Como estariam as Forças Armadas com o Haddad no meu lugar?", perguntou o chefe do Executivo, em referência ao ex-prefeito Fernando Haddad (PT), seu rival na campanha de 2018.

Não é a primeira vez que Bolsonaro diz que a democracia depende da vontade dos militares, mas, nos últimos tempos, subiu o tom dessa narrativa (mais informações nesta página). A ameaça vai na contramão da Constituição. Pela Carta de 1988, as Forças Armadas estão subordinadas ao poder civil e não têm autonomia para decidir os rumos políticos do País.

"O pessoal parece que não enxerga o que o povo passa, para onde querem levar o Brasil. Para o socialismo. Por que sucatearam as Forças Armadas ao longo de 20 anos? Porque nós, militares, somos o último obstáculo para o socialismo", disse o presidente, que é capitão reformado do Exército, no diálogo com eleitores.

Bolsonaro abriu nova polêmica justamente quando se discute a instalação de uma Comissão Representativa do Congresso, neste mês de recesso parlamentar, para votar a convocação do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e projetos relacionados à pandemia do coronavírus.

"O presidente flerta, mais uma vez, com o acirramento na relação com as instituições, o que é muito grave. É uma frase recorrente, muito próxima de desrespeitar a Constituição. Agora volta, no meio da pandemia, num sinal de desespero em relação à completa falta de gestão do seu governo e do seu Ministério da Saúde", disse o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-SP), ao Estadão.

A instalação de uma comissão do Congresso para se debruçar sobre a crise é uma nova queda de braço, a duas semanas das eleições que vão renovar o comando da Câmara e do Senado. A principal disputa, hoje, é travada na Câmara entre os deputados Arthur Lira (Progressistasal), apoiado por Bolsonaro, e Baleia Rossi (MDB-SP), que tem o aval de Maia.

Para o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), o Congresso e o Supremo Tribunal Federal precisam estar atentos a Bolsonaro. "Só um cego não percebe o caminho que o presidente está traçando na sua trajetória", destacou. Seu colega José Serra (PSDBSP) também se levantou contra o recado de Bolsonaro. "Tratase de uma visão autoritária em estado puro. Quem quer a democracia é o povo. E às Forças Armadas cabe servir à democracia. Como, aliás, elas têm feito nos últimos anos", observou o tucano.

O ex-ministro da Defesa Raul Jungmann foi na mesma linha. "Quem zela pela democracia, em primeiro lugar, é o povo, no uso dos seus direitos políticos. Em segundo, seus representantes e as instituições democráticas. Dentre estas, os poderes da República e as nossas Forças Armadas estão comprometidas com a democracia e a sua defesa", disse ele.

PARA LEMBRAR

'Militares e a liberdade'

7 de março de 2019

'Democracia e liberdade'

"Isso, democracia e liberdade, só existe quando as suas respectivas Forças Armadas assim o querem."

19 de abril de 2020

Em ato pró-intervenção

"Nós não queremos negociar nada. Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder."

22 de maio

Artigo 142

"Nós queremos fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. E, havendo necessidade, qualquer dos poderes pode, né? Pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil."

15 de junho

Militares

"Nós, militares das Forças Armadas, porque eu também sou militar, somos os verdadeiros responsáveis pela democracia nesse país."

Ontem Forças

"Quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas."