Valor Econômico, n. 5224, 08/04/2021, Política

 

Senado adia discussão sobre quebra de patentes
Daniel Rittner
Renan Truffi
08/04/2021

 

 

 

Após forte pressão de diversos setores do governo Jair Bolsonaro, o Senado Federal decidiu adiar, para a semana que vem, a discussão sobre a quebra de patentes das vacinas e medicamentos utilizados no enfrentamento à covid-19. A matéria estava prevista para ser apreciada ontem, o que provocou mobilização de representantes da Casa Civil, do Itamaraty e dos ministérios da Saúde e da Economia. Eles argumentam que a aprovação do projeto terá um custo reputacional muito alto para o Brasil no exterior e, acima de tudo, será inócuo.

A retirada da matéria de pauta gerou um embate, entretanto, entre os líderes do governo e senadores de centro e da oposição. Apesar da preocupação declarada do Executivo com o assunto, os senadores Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) e Eduardo Gomes (MDB-TO), que representam o Palácio do Planalto, tentaram usar a realização de uma audiência pública na Câmara sobre o tema como forma de postergar os debates no Senado.

“Não tenho que ouvir especialista nenhum que vai ser contra a quebra de patentes. Ninguém vai compreender por que o Senado não derrubou essa patente”, rebateu a presidente da Comissão das Relações Exteriores (CRE), senadora Kátia Abreu (PP-TO), uma das articuladoras da votação. Ela também rechaçou o argumento de que a quebra das patentes pode ser ruim para a imagem do Brasil no exterior.

“Nós estamos em uma guerra, e em estado de guerra não há que se preocupar com imagem em lugar nenhum. Será que os 60 países do mundo que estão pedindo a quebra de patente não se preocupam com a sua imagem? Será que é só o Brasil que se preocupa agora com a sua reputação? Deveria ter se preocupado com a sua reputação quando negou as vacinas da CoronaVac”, ironizou, em referência à postura negacionista do governo Bolsonaro.

Kátia é do PP, um dos principais partidos do “Centrão”, comandado por Ciro Nogueira (PP-PI), que é aliado do presidente. Ela recebeu apoio de senadores do PSD e do PT na discussão. O bate-boca fez Bezerra Coelho, líder do governo no Senado, elevar o tom. Ele alertou os colegas que a quebra das patentes pode significar uma decisão unilateral do Brasil no plano internacional. “Está se querendo se tomar uma decisão que não foi tomada nem pela Índia, nem pela África do Sul. O que esses países querem é uma decisão multilateral, para que possamos fazer isso no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC)”, argumentou. “Precisamos ouvir mais pessoas porque uma decisão açodada poderá obstaculizar mais vacinas para o país. Pode ser um tiro no nosso pé, isso tem repercussões na economia.”

Se a quebra de patentes passar no Congresso, a tendência é que os ministérios recomendem veto presidencial. No total, são dois projetos que versam sobre assuntos parecidos e serão analisados conjuntamente. O primeiro é de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS) e quebra a patente de vacinas e medicamentos para o enfrentamento do coronavírus. O segundo é de autoria dos senadores Otto Alencar (PSD-BA), Esperidião Amin (PP-SC) e Kátia Abreu, e prevê a licença compulsória do antiviral Remdesivir.

De acordo com o projeto, algumas obrigações sobre o acordo de propriedade intelectual no âmbito da OMC - conhecido pela sigla em inglês TRIPS - serão suspensas. Juridicamente, no entanto, o governo já alertou que isso contraria o normativo jurídico internacional. Nenhum tratado pode ser rescindido em partes. O acordo, como um todo, teria que ser denunciado - criando insegurança jurídica para quaisquer detentores de patentes, do agronegócio a fabricantes de equipamentos para as redes de 5G na telefonia celular.

O mais importante, segundo técnicos do governo incumbidos da negociação, é que nada disso permitirá acelerar a produção de vacinas no país. Laboratórios estatais e farmacêuticas foram consultadas pelo Ministério da Saúde, afirma uma fonte, para dizer se a quebra de patentes aceleraria a fabricação dos imunizantes. A resposta, incluindo a da Fiocruz, foi que não. Não se trata de uma receita de bolo. Não bastaria o licenciamento compulsório de uma vacina ou medicamento, mas dominar cientificamente o ciclo de produção. O Brasil precisaria redescobrir e reproduzir a forma como são feitas vacinas de empresas como a Pfizer ou a Janssen, o que poderia levaria meses ou anos. Além disso, faltariam insumos e capacidade produtiva.

Outro argumento do governo é que a quebra de patentes tende a inviabilizar o fornecimento de novas vacinas no futuro, incluindo gerações mais desenvolvidas de imunizantes ou contra outras cepas do coronavírus. Cita-se o caso do sofosbuvir como exemplo. O medicamento inovador aumentou as chances de cura da hepatite C e teve seus direitos de propriedade intelectual anulados pela Justiça em 2018. Depois disso, versões aperfeiçoadas e com menos efeitos colaterais do remédio surgiram no mercado internacional, mas não chegam ao país por causa da briga judicial. Com isso, pacientes brasileiros continuam usando a geração mais antiga do sofosbuvir.