Valor Econômico, n. 5226, 12/04/2021. Opinião, p. A14

 

Quebra de patentes, remédio simples para tema complexo

12/04/2021

 

 

O projeto de lei do Senado que facilita a quebra de patentes para vacinas contra covid-19 conta com amplo apoio das bancadas e, uma vez aprovado, também não deve ter dificuldade de aprovação na Câmara dos Deputados. O objetivo é acelerar o fluxo de imunização no Brasil, onde menos de 12% das pessoas receberam a primeira dose até agora. Apesar de muito bem intencionada, a proposta requer uma reflexão mais ampla e ponderações. Pelos elementos disponíveis atualmente, ela parece causar ainda mais problemas, sem trazer soluções.

Não se trata de defender cegamente o sistema de propriedade intelectual, que tem como pilar a garantia de remuneração justa e o prêmio àqueles que se expuseram ao risco, gastando fortunas em pesquisa e desenvolvimento de novos produtos. Até porque foram encomendas e incentivos multibilionários dos governos de países ricos que impulsionaram a descoberta de vacinas em período recorde de tempo. Os laboratórios também se beneficiaram do conhecimento acumulado por universidades que já vinham se dedicando à biomedicina. Mais uma vez, a mão nada invisível do Estado se fez presente e bagunçou narrativas ultraliberais. Além disso, deve-se reconhecer: se houvesse algum momento na história recente para abrir mão de acordos internacionais e relativizar a proteção de patentes, desde que houvesse resultados favoráveis, seria agora. No entanto, a questão mais relevante é essa: seria eficaz ou inócuo mandar às favas, por um tempo, os direitos de propriedade intelectual das farmacêuticas?

Os defensores da quebra de patentes se inspiram normalmente no bem sucedido e histórico caso do Efavirenz, da Merck, graças à flexibilização do acordo global de propriedade intelectual (conhecido pela sigla em inglês Trips). Foi uma iniciativa da diplomacia brasileira, em 2001, que permitiu a países emergentes ou pobres licenciamento compulsório de medicamentos em caso de emergências sanitárias. O Brasil, que pagava US$ 580 anuais por paciente à Merck, passou a gastar US$ 165 com genéricos. Graças à medida, milhares - talvez centenas de milhares de vidas - foram preservadas. Mas são casos muito diferentes. As negociações levaram anos e só houve sucesso ao reproduzir o remédio por causa da cooperação da própria farmacêutica.

O desafio das vacinas contra covid-19, infelizmente, é mais complexo. Respostas fáceis precisam ser evitadas. Imunizantes não são como uma receita de bolo. A dispensa de pagar royalties por usá-los não significa que, em questão de meses (talvez anos), seja viável reproduzir sua fórmula exata em laboratórios de genéricos. Isso exige amplo conhecimento técnico, domínio tecnológico, competência para fazer engenharia reversa - a partir do produto final, imitar o processo todo.

Em outubro do ano passado, a Moderna anunciou que não cobraria royalties pelos direitos de sua vacina. Meses depois, cientistas da Universidade de Stanford publicaram a sequência completa do mRNA do imunizante da empresa. Nenhuma dose adicional foi fabricada por qualquer outro país do mundo.

Faltam insumos vindos da China, faltam lacres para o envase na Fiocruz, falta capacidade produtiva, falta ação coordenada multilateralmente para acelerar a vacinação em massa. Sem isso, não haverá mudanças significativas no cenário descrito em fevereiro pelo secretário-geral da ONU, António Guterres: 75% das doses até hoje foram aplicadas em só dez países; ninguém havia levado uma única picada em 130 nações.

Além de tudo isso, há perguntas de fundo. E se precisarmos de outras vacinas contra futuras mutações do vírus? E se surgirem pandemias ainda mais letais do que a de covid? Quem estará disposto a se engajar em novas vacinas que, afinal, terão patentes quebradas?

No momento, o que mais poderia gerar resultados é uma estreita cooperação internacional, identificando capacidades produtivas que possam ser rapidamente ajustadas e usadas na fabricação de imunizantes, com transferência de tecnologia dos detentores das patentes. O G-20, a União Europeia, os EUA, a OMC e a OMS devem promover essa discussão. Laboratórios que se beneficiaram de mega-encomendas oficiais têm a obrigação de se engajar. Países ricos precisam gastar mais com a vacinação dos pobres. Ninguém está protegido até que todo o mundo esteja protegido. Se não, ao que tudo indica, conviveremos com cepas ameaçadoras.

Por mais bem intencionado que seja, o projeto do Senado corre risco de apenas criar a falsa expectativa de aceleração da oferta de vacinas. E, de soluções ilusórias, o país está cansado. Bastam a ivermectina e a cloroquina.