Título: É tempo de Quaresma
Autor: D. Eugênio Sales
Fonte: Jornal do Brasil, 05/03/2005, Outras Opiniões, p. A11

É necessário habituamos a pensar com confiança no mistério da morte

Assim começa a Mensagem do Santo Padre para a Quaresma de 2005: ''Todos os anos, a Quaresma se apresenta como um tempo propício para intensificar a nossa oração e penitência, abrindo o coração à dócil aceitação da Vontade divina''. Ele propõe à nossa atenção a palavra de Moisés preparando o povo de Deus para a aliança com Javé: ''A fidelidade a esta aliança divina constitui, para Israel, uma garantia no futuro pois, assegura pela longevidade, esse dom divino''. Nesta Quaresma vamos refletir sobre o papel que a idade avançada nos possibilita exercer na sociedade civil e na Igreja. Em nossos dias, como nos é dado viver mais, aumenta nossa responsabilidade em melhor servir à comunidade dos fiéis e atender a um eventual aumento de necessitados.

Diz o Santo Padre em seu documento: ''Se o envelhecimento, com os seus inevitáveis condicionamentos, for aceito com serenidade, à luz da fé, pode tornar-se ocasião preciosa para compreender melhor o mistério da Cruz, que dá sentido pleno à existência humana'' (Mensagem, nº 2). Como dispõe de mais tempo, além do enriquecimento cultural, o ancião pode transmitir valores da sabedoria e experiência que a idade lhe proporciona. Um frutuoso intercâmbio entre as gerações, jovens e anciãos, a todos beneficia.

Durante esta Quaresma, acompanhemos, com uma compreensão amorosa, todos que envelhecem. Além disso, é necessário habituar-se a pensar com confiança no mistério da morte, para que o encontro definitivo com Deus se realize num clima de paz interior, consciente do poder de quem ''nos teceu no seio materno'' (Salmo 139, 13b) e nos fez ''à Sua imagem e semelhança'' (Gn 1,26).

O Concílio Vaticano II, na Constituição Apostólica ''Gaudium et Spes''(nº48) assim se expressa sobre a atitude dos filhos, diante de pais idosos: ''Eles, como membros vivos da família, contribuem, a seu modo, para a santificação dos pais. Corresponderão, com a sua gratidão, piedade filial e confiança, aos benefícios recebidos dos pais e assisti-los-ão, como bons filhos, nas dificuldades e na solidão da velhice''. O Decreto Conciliar ''Apostolicam Actuositatem'' (nº 11) aborda a participação dos velhos no desenvolvimento econômico, incluído entre as obras de apostolado familiar: ''Fazê-los usufruir, não só do necessário mas também, de modo generoso, tornando-os participantes dos justos frutos do progresso econômico''.

Estimulados pela Mensagem do Santo Padre para a Quaresma, aproveitemos da riqueza da Sagrada Escritura sobre a velhice. Para uso pessoal, se já atingimos essa idade, ou, se ainda não, como orientação de nosso comportamento diante dos anciãos que encontramos em nossa vida. Isso é importante, de modo particular, quando se trata de parentes.

São numerosas as referências da Bíblia ao assunto. Há aspectos positivos que destacam a sabedoria e outros negativos,que mencionam as limitações. Diz o Eclesiástico (25, 5 e 6): ''Como é bela a sabedoria dos anciãos (...). A coroa dos anciãos é uma rica experiência; a sua glória, o temor do Senhor''. Entretanto, repetidas vezes, a Sagrada Escritura alerta para o declínio das atividades e o crescimento de limitações. O Levítico (19,52) dá normas precisas: ''Levantar-te-ás diante de uma cabeça encanecida, honrarás a pessoa do ancião e temerás o teu Deus. Eu sou Javé''.

Esse grande enriquecimento espiritual, tendo como fundamento a velhice, é oferecido aos que já vivem, como eu, essa idade, ou para os que se preparam. Reflitamos sobre mais duas passagens bíblicas: o Salmo (92, 13-15 e 26): ''O justo brota como a palmeira, cresce como o cedro no Líbano (...). Eles dão fruto mesmo na velhice, são cheios de seiva e verdejantes para anunciar que Javé é reto: meu rochedo, nele não há injustiças''. E outra, na carta de São Paulo a Tito (1, 1-3): ''Quanto a ti, fala do que pertence à sã doutrina. Que os velhos sejam sóbrios, respeitáveis, sensatos, fortes na fé, na caridade e na perseverança. As mulheres idosas, igualmente, devem proceder como convém a pessoas santas''. Com data de 1º de outubro de 1992, João Paulo II enviou um documento aos velhos de todo o mundo. No início, lemos: ''Sendo também eu ancião, senti o desejo de estabelecer um diálogo convosco''. Quem ainda não leu, procure fazê-lo.

A III Conferência Geral do Episcopado latino-americano, reunido em Puebla, de 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979, na visão pastoral da realidade do nosso Continente, assim se expressa: ''rostos de anciãos, cada dia mais numerosos, freqüentemente marginalizados da sociedade, do progresso que prescinde das pessoas que não produzem'' (Conclusão, 39). E a 4ª Conferência Geral, em Santo Domingo, outubro de 1982, entre os desafios à América Latina (Conclusão, 179), diz: ''A nós, Pastores, nos comove até as entranhas, o ver continuadamente, a multidão de homens e mulheres, crianças, jovens e anciãos que sofrem o insuportável peso da miséria, assim como diversas formas de exclusão social, étnica e cultural; são pessoas humanas, concretas e irrepetíveis, que vêem seus horizontes cada vez mais reduzidos e sua dignidade desconhecida''. Passados mais de dois decênios, agradeçamos ao Senhor os dados que alimentam o otimismo. Infelizmente também aumenta em nossos dias, no Brasil, a ''cultura da morte'' denunciada no mesmo documento: ''Nosso Continente, em razão do ''imperialismo'' anticonceptivo, tenta impor a povos e culturas, todo o tipo de anticonceptivos, esterilização e aborto (...) sem respeito às tradições religiosas, éticas e familiares de um povo ou cultura'' (Carta da Santa Sé à Reunião de Bangkok, da Organização Mundial da Saúde).

Crescem, em nossa Pátria, habilmente camuflados, mas bem identificados, um revigoramento do marxismo, a difusão de medidas que tentam afastar obstáculos à aprovação do aborto ou favoreçam sua descriminalização. O progresso do País, no campo econômico, não pode servir de moeda para comprar a aprovação de métodos anticristãos em nosso Brasil. Estejamos atentos, nesta Quaresma, sobre a velhice e esses outros problemas.