Título: ''Vivemos sob o poder cultural masculino''
Autor: Paula Barcellos
Fonte: Jornal do Brasil, 05/03/2005, Ideias & Livros, p. 1

Entrevista: Xinran

¿A história dela foi fragmentada. Não entrou em detalhes sobre causas nem conseqüências, e fiquei com a forte impressão de que ela ainda não estava disposta a revelar todas as suas experiências¿. As palavras são da jornalista Xinran, em As boas mulheres da China (Companhia das Letras), resultado de entrevistas realizadas com chinesas de diferentes idades e classe social, entre 1989 e 1997. Mas bem que o trecho poderia se referir à própria autora. Chinesa, 46 anos, ela mesma sofreu tanta discriminação e desamparo que, em 1997, foi obrigada a se mudar para Londres com seu filho. Na época, sofria constantes ameaças por conta do seu programa de rádio Palavras na brisa noturna, cuja proposta era discutir questões femininas. Para dormir, sob tanta pressão, Xinran chegou ao ponto de tomar oito comprimidos por noite. Apesar de debater a vida das mulheres, a jornalista chinesa confessa não se sentir preparada para falar sobre a própria vida. Em especial, sobre sua infância e sobre o pai do seu filho. ¿Achei ainda mais difícil ser mulher chinesa quando observada pelos olhos do ocidente e da China. Para os ocidentais, não sou tradicional o bastante. E quando volto à China, para os chineses, meu conhecimento não está atualizado¿, conta Xinran. Embora as chinesas ainda estejam muito subordinadas ao homem, a jornalista, que também pela Companhia lançou Enterro celestial, vê com otimismo o futuro das mulheres. ¿ Na China, por muito tempo, viveu-se uma opressão à liberdade de pensamento. O que a encorajou a burlar os padrões e ouvir as mulheres?

¿ Minha infância sofrida foi o primeiro passo para começar a entender o sofrimento das mulheres. A doação, o amor e a confiança de muitas chinesas me encorajaram. Em 1992, fui até uma pequena cidade tão pobre que uma família com cinco pessoas se sustentava apenas com duas galinhas. Todos os dias, trocavam dois ovos por comida e roupa. Quando cheguei até eles, não me disseram uma palavra ou deram um sorriso, mas mataram uma das galinhas para me dar um almoço de boas vindas. Não sei quantas pessoas no mundo podem partilhar a sua pobreza por gratidão. Em 1996, voltei lá e a família tinha enriquecido. Quando parti, me deram 20 galinhas e 100 ovos. Mas refeição como aquela de 1992 nunca se repetirá em minha vida. Foi um estímulo.

¿ Embora a chinesa esteja no mercado de trabalho, a submissão em relação ao homem permanece. Por quê?

¿ Na China tudo acontece de maneira mais lenta se comparado a outros países desenvolvidos, porque passamos 100 anos de guerra civil e religiosa. Mas não acredito que seja só na China que a mulher tenha um papel subordinado na sociedade. Como viajei por 30 países para lançar meu livro, pessoas de diversos lugares me contaram que suas mulheres sofriam problemas similares aos das chinesas. Devemos saber que ainda vivemos sob o poder cultural masculino. As chinesas recuperarão o tempo perdido.

¿ Estudos apontam que as chineses são muito contidas. É assim mesmo?

¿ As chinesas não querem falar sobre suas vidas hoje em dia, porque é muito doloroso lembrar o passado, assim como na Alemanha e no Japão após a Segunda Guerra Mundial. Conversas entre diferentes gerações são marcadas pelo silêncio, porque as mulheres que perderam seus maridos na guerra não conseguem encaram as perguntas de seus filhos (¿O que meu pai foi fazer na guerra?¿). Esse é o motivo pelo qual não pude conversar com minha mãe, que passou 10 anos na prisão, sobre minha infância. Ainda não consigo responder perguntas sobre a minha infância. Mas me parece que, no resto do mundo, só nos últimos 50 anos a mulher passou a ter a chance de falar.

¿ Como conseguiu convencê-las a contar suas histórias?

¿ Contei a elas sobre minha vida como filha e mãe. Fiz com que percebessem que era uma delas. Passei um tempo com mulheres em vizinhanças bem pobres, no campo, sem educação nem experiência de vida moderna, e aprendi com elas a levar uma vida diferente.

¿ Foi difícil se deparar com realidades tão duras?

¿ Foi difícil. Foi duro controlar minhas emoções. Muitas histórias não pude colocar inteiras no ar. Sempre quando voltava de entrevistas no campo, mal conseguia falar. Não consigo esquecer a vida de algumas mulheres que vivem como se vivia há 500 anos. Tive que encarar muitas pessoas sem o mínimo de informação, que pensavam a mulher como propriedade do homem de acordo com as leis tradicionais. Eles me diziam que não deveria falar com as mulheres sobre liberdade e educação. E algumas mulheres também pensavam assim. Cheguei a receber cartas com facas e armas.

¿ Como lidou com tanto sofrimento?

¿ Nunca conseguirei lidar com isso. Pude me controlar no dia, com um sorriso e uma paz aparente. Mas essa postura logo se perdia e sempre acordava a noite sonhando com as histórias daquelas mulheres e da minha infância. Esse foi um dos motivos que me fez deixar a China. Em 1997, quando resolvi me mudar, estava tomando cerca de oito aspirinas para poder dormir.

¿ Hoje, quando retorna, vê diferença no comportamento das chinesas?

¿ Há uma grande mudança na China. Em 2002, vi um tipo de felicidade e alívio nos olhos de muita chinesas pela primeira vez. Embora a posição da maioria ainda seja de subordinação, muitas estão lutando para viver, apesar de a China ainda apresentar um dos maiores índices de suicídios praticados por mulheres no mundo.

¿ Por que um índice tão alto?

¿ A China é um dos poucos países que tem mais suicídio cometido por mulheres do que por homens ¿ 25% a mais. Não sei quais seriam todas as razões, mas, através das cartas que recebo, posso identificar algumas. Na história da China, há uma cultura de as pessoas se matarem por prazer ou para honrar suas famílias. Quanto às mulheres, o suicídio seria uma forma de provar sua honestidade e amor verdadeiro. Esse ainda pensamento persiste. Além de muitas chinesas preferirem desistir da vida a sofrer por não serem boas mulheres, segundo a tradição.

¿ Por que esse pensamento persiste mesmo após a abertura cultural?

¿ Acho que descobri a resposta através de uma mulher que conheci há alguns anos. Estava sentada ao lado dela num hospital e ela me contou que tentou se suicidar duas vezes. A primeira vez até compreendi, já que ela morava no campo e era constantemente estuprada pelo ex-marido. Agora, na cidade, longe dele e trabalhando? Ela olhou para mim e respondeu: ¿Por que demorei tanto para saber que há vida diferente da do campo? Por que não tive a chance de aprender a ler e a escrever? Por que não pude escolher quem amar? Por que tive que abrir mão da minha filha por ser uma menina, enquanto na cidade elas andam por aí lindamente em seus vestidos? Como posso suportar essa dor? Foram tantas perguntas, para mim sem resposta, que ficamos em silêncio¿. Acho que dá para entender porque os suicídios continuam.

¿ As ocidentais são muito diferentes?

¿ As mulheres ocidentais já tinham algumas coisas que as chinesas nunca tiveram antes dos anos 90: liberdade de religião e de expressão, educação sexual que só começou em 2003. O poder sobre a vida das mulheres está com seus maridos. Por isso, a cultura chinesa se tornou tão fechada e ¿negativa¿. Antes de 1992, a pressão da tradição fazia com que as chinesas vivessem numa sociedade sem sorriso, calor humano. A vida das ocidentais foi construída de forma mais tolerante pelo carinho do homem, mesmo quando não era de coração. Muitas das chinesas que moram fora não conseguem entender como tantas ocidentais gostam reclamam sobre ¿suas vidas perfeitas¿. Deve ser porque temos diferentes modelos de uma boa vida.

¿ Qual foi a reação dos seus leitores?

¿ Muitos me escreveram para dizer como o livro os tocou e mexeu com suas vidas. Recebi de uma mulher uma carta de 22 páginas descrevendo como, com apenas 7 anos, sofreu abusos sexuais de um homem. Ela tinha 49 e nunca tinha contado a experiência para ninguém, nem mesmo para o seu marido. Ela me contou como, embora tivesse quatro filhos, ela pára todos os dias na frente do espelho e diz ¿Odeio homem¿. Quando ela terminou de ler o livro, sentiu que poderia externalizar seu sofrimento. Mas o livro também tocou os homens. Nos Estados Unidos, um homem me disse que, depois de ler, passou a notar as mulheres ao seu redor para oferecer mais carinho, suporte e amor.

¿ Quais foram seus maiores momentos de felicidade na China?

¿ Quando voltava para casa de uma entrevista distante, poder beijar e abraçar meu filho Panpan. Lendo, escutando música, viajando sem preocupação, diferentemente das mulheres que conheci. Mostrando aos meus amigos alguns dos ensinamentos que aprendi com as mulheres ao redor da China. Hoje, diria que sou feliz porque posso contar as pessoas o que aprendi nas minhas andanças e no meu coração sobre a vida das mulheres.

¿ O que faz uma boa mulher?

¿ Em 1995, perguntei aos chineses o seguinte: Quantas mulheres boas vocês tiveram na vida? O que faz uma boa mulher? Recebi quase mil cartas em três semanas. Mas menos de 20 disseram que tiveram uma boa mulher. Fiquei chocada com a visão dos chineses. Nas cartas, eles me deram cinco características que fazem uma boa mulher: 1) Nunca conversar com outro homem; 2) Ter um filho; 3) Dever ser amável o tempo todo com a família; 4) Nunca fazer o trabalho de casa errado; 5) Deve ser boa no sexo com seu marido e estar sempre bela para ser apresentada fora de casa. Não consigo imaginar uma mulher que consiga preencher todos esses quesitos o tempo todo. Das chinesas dos meus livros, nenhuma seria boa dentro deste modelo tradicional. Mas eu as acho boas porque deram amor as suas famílias.

¿ Quais são suas recordações da Revolução Cultural?

¿ Foi um período em que me senti viva e morta ao mesmo tempo e ainda com uma mistura de sentimentos sobre os meus pais. Tinha 7 anos quando estourou a Revolução Cultural e me comportei como pensava que uma boa filha se comportaria. Meu pai estava preso e escrevi para ele honrar com sangue o povo chinês. Essa carta foi pregada na parede próxima à mesa de refeição em sua cela na prisão. Nunca conversei com meu pai sobre isso. Jamais conseguiria apagar aquela carta de nossas memórias.

¿ Nunca pensou em escrever sobre os bons homens da China?

¿ Sempre digo que não sou qualificada. Minha desculpa é a de que só um homem poderia escrever um livro assim. Mas há outra razão ¿ uma que nunca conto, mas que sempre martela minha cabeça. Minhas experiências na China me deixaram um sentimento de que não há tantos homens bons assim, ao menos não nos moldes da sociedade civilizada. Meu pai agia como um político e administrador até na vida dos filhos. Se não seguíssemos o que ordenava, ele nos chamava de mal-educados. Quando crescemos, só nos perguntava sobre trabalho e crenças políticas. Não havia perguntas sobre nossas emoções ou nossos amigos. Quando falo com meu irmão, ele sempre me diz: ¿Não tenho tempo para me preocupar com o que as pessoas pensam ou com o que se passa na cabeça das mulheres. Sou muito ocupado para ser o tipo de marido ou pai que você gostaria¿. Quando converso com a mulher dele, ela costuma dizer: ¿Se quer ver uma vida romântica na China, vá ao cinema¿. Mas, recentemente, a pergunta de um chinês balançou a minha teoria. Ele perguntou o que poderia fazer para melhorar a vida das chinesas. Fiquei tocada com a pergunta. Então acho que estava errada. Se não existisse nenhum homem bom, como haveria tantas mulheres boas na China? Esse homem me deu esperança.