Título: Cultura cívica: o bom combate
Autor: Paula Barcellos
Fonte: Jornal do Brasil, 05/03/2005, Ideias & Livros, p. 1
Ao contrário da intelectualidade sul-equatoriana, a norte-americana adora o próprio país. Bem analisadas, as críticas de suas esquerdas liberais ¿ à exclusão, portanto, do anarquismo temporão ¿ reclamam por maior autenticidade dos governos, democráticos ou republicanos, e solicitam que os Estados Unidos sejam radicalmente os Estados Unidos. Para os críticos, o que existe contraria o que devia ser, e o que o país devia ser consiste no que os conservadores asseveram que ele já é. A diferença não é de fórmula, mas de dosagem: os acomodados consideram que os Estados Unidos já são o bastante; os reformadores, que o são de menos. Já a intelectualidade brasileira simpatiza com o país no atacado e o abomina no varejo: as instituições não prestam, os costumes estão degradados, a administração pública, corrompida, a literatura, tísica, a música erudita não existe, a popular escapa raspando, as artes plásticas são lamentáveis e do teatro não se deve nem falar. A propaganda oficial de que o bom do Brasil é o brasileiro é recebida com reserva, senão desdém, pois a quase unanimidade da população julga que o pior do Brasil é justamente o brasileiro. O melhor mesmo seria mudar o país, vesti-lo pelo avesso, submetê-lo a transplantes, moldá-lo a silicone. É o que parecem dizer as pesquisas de opinião.
É inegável: a cultura cívica do país parece pífia. Mas deve haver algo de equivocado no desfrute dos que se reconhecem iguais, e separados, passageiros do soberbo zepelin de onde observam o vasto mar da bosta nacional. Não podem estar inteiramente corretos, e de alguns até se diria que compõem um coletivo de bestas ornamentais. Mas só um paroquialismo de percevejo, entretanto, abraçaria a causa de um Brasil sem jaça. O país se ajusta, com elegância, ao figurino do opróbrio. Todavia, não é incontroverso que o proclamado desatino nacional seja um mal absoluto. Fundamentalismos de qualquer espécie, por exemplo, tem pouca chance de provocar os extremos de barbaridade de que são capazes os que são levados a sério. Não é pouca coisa.
Veja os Estados Unidos. Um de seus intelectuais está firmemente convencido de que ser um americano é um compromisso ideológico, não acaso de nascimento. Pois, diz ele, os Estados Unidos são um país organizado em torno de uma ideologia, de um conjunto de dogmas sobre a natureza da boa sociedade. Praticamente, transcrevi trechos do primeiro capítulo do livro de Seymour Martin Lipset, American exceptionalism, de 1996. Os dogmas a que se refere estão na introdução, onde se lê: ¿O Credo Americano pode ser descrito em cinco termos: liberdade, igualitarismo, individualismo, populismo e laissez-fairianismo¿. E, mais adiante, no capítulo 2: ¿Os americanos são moralistas utópicos que pressionam fortemente para institucionalizar a virtude, para destruir as pessoas más e eliminar práticas e instituições malignas¿. Não obstante a surpresa que tal mixórdia deve causar na intelectualidade ornamental brasileira, é nisso que a população americana acredita, e porque também acredita que é um povo predestinado. Pela religião, baseada em seitas, antes que em igrejas em sentido latino, e pela geração de grandes homens quando se fazem necessários. Ouçam esta: ¿A saga da história americana põe em relevo a controvérsia sobre o papel da grandeza individual na história. Contudo, deve haver poucas dúvidas de que a mão da providência tem estado na nação que encontra um Washington, um Lincoln ou um Roosevelt quando necessita¿. Está no prefácio.
O saudoso V. Illitch deixou um problemão com sua teoria de que o imperialismo seria o último estágio do capitalismo. Se tudo o mais fosse verdadeiro, um bom materialista dialético ficaria paralisado entre opor-se reacionariamente à expansão do capitalismo, véspera da revolução, ou reacionariamente apressar, ajudando, seu desenvolvimento. Como um bom Lênin, Vladimir exportou a teoria do imperialismo e importou a técnica do golpe de Estado. Esquisito é que pouca tinta tenha sido gasta pela intelectualidade norte-americana no combate à teoria. Nada parecido, de qualquer modo, à torrente literária em defesa da singularidade americana e de seu dever de exportador da boa sociedade, de que o livro de Lipset, citado, é apenas uma ilustração.
O grande desígnio do império americano sempre foi de natureza predominantemente política, do qual decorreriam naturalmente as vantagens econômicas. É possível um domínio econômico sem controle político, mas é muito pouco provável uma dominação política inocente de controle econômico. Desde a década de 60 do século XX que a grande fábrica ideológica norte-americana apura a doutrina de uma Civilização Ocidental, doutrina resumida no credo descrito por Lipset. Seria principalmente na cultura cívica dos países que a resistência ao domínio imperial americano se daria, não na economia. O controle econômico pode ser deixado às forças do mercado, mas o domínio político, sem violência, requer persuasão. São da década de 60 os estudos comparados de cultura cívica, as recomendações estratégicas para o controle futuro das nações africanas, com base nas supostamente transitórias ditaduras militares, intermediárias entre a sujeição colonial do passado e a democracia florescente do futuro. Os sem dúvida brilhantes ensaios que Samuel Huntington vem publicando regularmente ¿ para explicável irritação do mundo inteiro ¿ apontam justamente para a necessidade de que o Império americano tome total consciência de seu papel e funcione de conformidade. Mais recentemente, é o temor de que a predestinação americana seja comprometida pela infiltração de valores não-americanos ¿ por exemplo, o pandemônio latino ¿ que o tem levado a posições extremamente anti-populares, inclusive entre os fariseus liberais seus compatriotas.
O expresso compromisso de Huntington, além do de vários outros autores, com o projeto político imperial norte-americano, muitas vezes apresentado de maneira benevolente, não é de modo algum fenômeno isolado. O tema já é tratado normalmente como uma questão de natureza teórica e prática. Em 2004, James C. Bennet publicou um volume com o seguinte título: O desafio da anglo-esfera ¿ Porque as nações de fala inglesa vão liderar o mundo no século XXI. Não há, no volume, nenhuma referência depreciativa aos países não anglófonos. Dá-se, segundo ele, que por acasos históricos criou-se nessa esfera um tipo de sociedade com uma cultura cívica altamente competitiva, ansiosa por progresso, e com instituições favoráveis ao avanço tecnológico. O resultado teria sido a velocidade de escape que a anglo-esfera adquiriu em matéria de avanço científico e tecnológico, que exigirá séculos para ser alcançada. A integridade mundial dependeria daqui por diante da capacidade da periferia em ajustar-se à cultura cívica dominante.
A globalização econômica, nome contemporâneo do imperialismo, segundo os críticos, é inevitável e, em certo sentido, desejável, desde que buscada como parceiro em posição favorável antes que como adversário derrotado. A transformação da cultura cívica nacional é outra história. É na arena cultural que a grande batalha secular está sendo anunciada. Ariano Suassuna foi premonitório. Nem todos os combates se darão segundo as normas que ele imaginou, mas a batalha é essa ¿ a da cultura cívica nacional, abrangente e multifacética. Note-se: nada de ¿sentimento versus razão¿ (versão ideológica e colonizada do combate). Trata-se de razão e razão, com direitos iguais de sobrevivência. Nesse combate, a intelectualidade ornamental é nefasta.
*Wanderley Guilherme dos Santos é membro da Academia Brasileira de Ciências e Pró-Reitor da Universidade Candido Mendes. Ele escreve mensalmente para o Idéias.