Título: Capitus e emílias
Autor: Paula Barcellos
Fonte: Jornal do Brasil, 05/03/2005, Ideias & Livros, p. 1

Da mistura de personagens, surge o retrato de uma mulher calcada na realidade

Com um olhar de cigana oblíqua e dissimulada, dribla a vida com a esperteza de uma boneca de pano e conquista amores com um aroma especial de cravo e canela. À inocência quase pueril de uma migrante nordestina soma-se a garra e a força de quem lutou contra os abusos sexuais do padastro. Sem contar a mente contestadora e a opção pelo trabalho de uma certa professorinha. E, na cama, se preciso, dá conta até de dois maridos. Brincadeira? Pode ser. Mas, no momento da construção de personagens, ficção e realidade fundem-se. E nessa mistura de sotaques, temperos e autores está a mulher brasileira. De Capitu, de Machado de Assis, a Emília, de Monteiro Lobato, cada símbolo feminino presente nos livros retrata, em certa medida, o que foi, o que é e o que virá a ser a mulher brasileira. E não poderia ser diferente. Como acentua o romancista Luiz Alfredo Garcia-Roza, o personagem pode ser criado pelo imaginário, mas é necessariamente plasmado na vida. O escritor Nelson de Oliveira faz um certo doce no início ¿ ¿Não conheço tão bem assim a mulher para tentar defini-la¿ ¿ mas logo arrisca um palpite: ¿ Na verdade, penso que não há apenas ¿a mulher brasileira¿, mas sim ¿as mulheres brasileiras¿, no plural. Diria que a mulher que mais me atrai é a do tipo Emília.

Sim. Aquela boneca tagarela e cheia de artimanhas da turma do Sítio também tem um quê de grande mulher. Moleca, brincalhona, divertida, transgressora e traquinas. ¿Carpe diem¿, segundo Nelson de Oliveira, é o seu lema. A vida para ela, complementa o escritor, é mais diversão do que trabalho, o mundo está aí para ser descoberto, não para ser conquistado e explorado. E para quem acha que por ser boneca seria assexuada, o organizador de Geração 90 faz um alerta:

¿ Como não gosta de dormir, também na cama sempre tem alguém com quem brincar. Seu homem preferido é o do tipo Macunaíma, tão travesso quanto ela. Mas, às vezes, ela prefere mesmo é estar com outra Emília.

Marcelino Freire não pensou duas vezes. Quando perguntado sobre qual personagem feminino melhor representaria a mulher brasileira, disparou: ¿Macabéa, é claro!¿ E que mulher nunca se identificou com a migrante nordestina de A hora da estrela, de Clarice Lispector? Todas já tivemos um ¿momento macabéa¿ de solidão, de inocência, de dúvida, de dor, de descoberta. Sem contar uma certa obsessão por ¿porquês¿, típica da alma feminina.

¿ A mulher mais brasileira da literatura é a Macabéa, que tem olhar da Cachorra Baleia, de Vidas secas, de Graciliano Ramos. As duas juntas me dizem muito de um Brasil assim, profundo, no coração do terceiro mundo ¿ lembra a alma feminina de Marcelino Freire, como o mesmo diz.

O ar misterioso fica por conta de Capitu, de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Se ela traiu ou não, é o de menos.

¿ Apesar de achar que Bentinho represente muito mais o homem brasileiro do que Capitu a mulher brasileira, fico com ela ¿ aponta Mário Prata, para quem, indiscutivelmente, fora da ficção, a mulher a cara do Brasil é Leila Diniz. E não foi apenas o autor de Mas será o Benedito? que lembrou o ícone Leila Diniz.

¿ Não vejo nenhuma mulher tão verdadeira quanto a professora vivida por Leila Diniz, criada no roteiro para o filme Todas as mulheres do mundo, de Domingos de Oliveira ¿ realça Fernando Monteiro.

Para ele, os escritores brasileiros foram até agora machistas demais para criar uma mulher real e completa, vivendo e transpirando, menstruando e suando como todas as mulheres do mundo.

O poder de sedução, o calor da brasileira, teria sido capturado por Jorge Amado. Em terras baianas, criou personagens arretadas e calientes como Tieta do Agreste, Dona Flor e Gabriela.

¿ Talvez a Gabriela, de Jorge Amado, seja a mais representativa da sensualidade feminina. A cena, imortalizada nas telas, de Sônia Braga subindo o telhado é a maior imagem sensual da brasileira ¿ conta o escritor Antônio Torres.

Para José Roberto Torero, não bastaria só uma definição:

¿ Uma resposta clichê seria Gabriela, de Jorge Amado. Mas as coisas não são assim. As mulheres são mais complicadas. Elas têm também um lado Macabéa, outro Emília e outro Capitu. E nesse mosaico de personagens que espelham a mulher brasileira não poderia ficar de fora a nossa espécie de Joana D¿Arc, a Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins, de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Aquela ¿que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor¿.

¿ Mulher travestida de homem, Deodorina, mais conhecida como Diadorim, talvez seja uma das mais complexas personagens da nossa literatura ¿ acredita Milton Hatoum.

Para o autor de Dois irmãos, há outras grandes personagens como a professorinha de O Quinze e a Maria Moura, de Rachel de Queiroz. São tantas, e tão elaboradas e convincentes, explica Hatoum, que às vezes fogem da ficção e entram na nossa vida. E parece que uma determinada personagem marcou mesmo a vida do jovem escritor Joca Reiners Terron:

¿ A Marilyn Monroe mutante de PanAmérica, romance de José Agrippino de Paula, publicado em 1967, tem a voracidade sexual, os peitos generosos e a mesma capacidade de mudar de parceiros que a mulher brasileira, além do idêntico cabelo tingido de louro e de um código de barras com a oferta ¿vende-se¿ estampado na nádega.

Com a declaração de Terron, fica provado, supõe-se, que há gosto e opinião para tudo. E a literatura está aí também para isto: servir de banquete à imaginação para satisfazer todos os desejos. Obviamente, é impossível reduzir a mulher a um ou outro personagem.

¿ Não há uma personagem feminina que melhor represente a mulher brasileira. Escolher uma delas ou mais de uma seria cometer injustiça com os criadores das demais e, afinal, uma injustiça com a própria mulher brasileira ¿ acredita o mineiro Luiz Vilela.

Ou, como definiu Antonio Torres, a mulher brasileira é composta por vários retratos da literatura.