Valor Econômico, n. 5231, 19/04/2021. Política, p. A9

 

“Um PGR não pode ser refém de suas ambições”, diz Nicolao Dino
Isadora Peron
19/04/2021

 

 

 

Mais votado em 2017 na lista tríplice organizada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) para a sucessão na Procuradoria Geral da República (PGR), o subprocurador-geral da República Nicolao Dino diz que a gestão de Augusto Aras no comando do Ministério Público Federal (MPF) tem uma espécie de vício de origem, já que o presidente Jair Bolsonaro ignorou a lista tríplice organizada pela ao indicá-lo, em 2019.

Para ele, isso colocou em xeque a independência de Aras no cargo. Quando concorreu à PGR, Dino foi preterido pela segunda colocada, Raquel Dodge, escolhida pelo então presidente Michel Temer. No caso de Aras, dois anos depois, ele sequer participou da consulta interna.

Em entrevista ao Valor, Nicolao também criticou a atuação - ou a omissão - do PGR na pandemia, como no caso da falta de oxigênio em Manaus.

O subprocurador disse ainda que um procurador-geral não pode ser “refém” de ambições pessoais, seja para ser reconduzido ou para alcançar outras posições, como a de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

O mandato de Aras termina em 26 de setembro e ele é visto como interessado em ser indicado para o STF, cuja próxima vaga abre em julho, com a aposentadoria do decano, ministro Marco Aurélio Mello.

Mesmo considerando difícil Bolsonaro escolher algum nome da lista tríplice, ele defende o processo e diz que a iniciativa tem um significado político importante.

Sucessão na PGR em setembro
A serem mantidas as mesmas premissas de 2019, é muito difícil imaginar que o presidente venha a acatar a lista tríplice. O que não desautoriza a realização do procedimento. A iniciativa tem um significado político, no sentido lato, muito importante. Eu ainda estou avaliando se vou participar.

Crítica de Aras à lista tríplice
O próprio procurador-geral fez questão de deslegitimar a lista tríplice. O Ministério Público, não obstante, defende uma maior democratização, incorporando o modelo que vige nos Estados desde 1988, o processo de formação de listas tríplices. Não é uma jabuticaba. No entanto, o presidente desconsiderou essa sistemática, que já era tida como um costume constitucional, e realizou uma escolha monocrática, que tem amparo na Constituição, mas que sob o ponto de vista da legitimação interna acaba por deixar muito a desejar.

Xadrez institucional
No dia da sua posse, [Aras] foi identificado como a dama do tabuleiro de xadrez, no qual, neste tabuleiro, o presidente da República seria o rei. Essa frase tem várias conotações. Se você considerar o tabuleiro de xadrez como o corpo político, o governo, a analogia é equivocada, porque o procurador-geral da República não é órgão de governo. O Ministério Público é um órgão de Estado. O PGR é um cargo político, mas de Estado. Então, pela sua essência, tem independência para agir e, inclusive, fiscalizar atos do governo. Na medida em que se afirma isso como uma premissa de atuação, me parece que já se compromete a própria ideia de independência funcional.

Independência do PGR
O fato de haver uma escolha tal qual diz a Constituição,por si só, não é indicativo de perda de independência. Hoje, em que nível se verifica o exercício independente da função de procurador-geral da República? É uma pergunta que precisa ser objeto de reflexão, tendo em vista que se avizinha o término do mandato.

Investigações contra Bolsonaro
Qual é o grau de desvinculação e independência que deve existir no cargo do procurador-geral da República em relação à estrutura de governo que o escolheu? Eu tenho absoluta certeza de que um dos mecanismos mais fortes sob o ponto de vista da legitimação é o processo de eleição. Há um discurso de descrédito sobre esse processo que chega a preocupar. Se formos levar esse raciocínio ao seu extremo, vamos colocar em xeque a própria democracia representativa. A via da eleição, de uma submissão ao crivo, não torna a figura do procurador-geral refém de corporação. O PGR não pode ser refém nem de corporação, nem de governos. Seja qual for o procurador-geral em qualquer país deste planeta.

Omissões
O cargo do procurador-geral é percebido nos seus atos e no seu silêncio. A imprensa tem dado visibilidade a atos e omissões do PGR e isso, evidentemente, repercute dentro e fora da instituição. Eu verifico que, no ambiente interno, há em muitos procuradores jovens um sentimento de desencanto enorme, gerando esse clima de distopia, que está presente não apenas no MPF.

As palavras têm peso
Em janeiro, quando começou a surgir a segunda onda da pandemia, o procurador-geral da República disse, em certa altura, que o Estado de calamidade pública era a antessala do Estado de defesa. O que isso significou? As palavras têm peso, e quem as emite também tem. E na medida em que o veículo dessas palavras é o PGR e o conteúdo dessas palavras sugerem um certo posicionamento desviante daquilo que se espera em termos de democracia, isso gerou uma perplexidade. Trago esse exemplopara ilustrar o quão grave, no sentido da responsabilidade, é a fala, o agir ou não agir do procurador-geral.

Crise no Amazonas
O MPF lá no Amazonas apontava insistentemente o colapso no atendimento médico-hospitalar. Esse fato nos desafia a uma tomada de posição. No entanto, o que foi dito lá em janeiro, quando a crise se agudizou? Foi anunciado a requisição de um inquérito epidemiológico e sanitário, no âmbito do próprio Ministério da Saúde. Eu quero crer, com todo o respeito à figura do procurador-geral da República, que essa medida, naquele momento, se revelava insuficiente para apurar responsabilidades de autoridades ao crivo do STF. Requisitar um inquérito para ser conduzido no âmbito do órgão que vai ser investigado? Isso não faz nenhum sentido.

Inquérito contra Pazuello
Em Manaus, os fatos foram se agravando, na dimensão de irreversibilidade. Houve a própria substituição do ministro da Saúde [Eduardo Pazuello]. Caberia, naquele momento, uma postura, a meu ver, mais incisiva do processo de investigação de responsabilidades. Muitas vezes poderia até favorecer a correção de rumos se tivesse sido feito algo de forma antecipada.

Ambição pessoal
Sem fulanizar o debate, eu acho que há alguns pontos que precisam ser ajustados no processo de escolha do procurador-geral. Um PGR não pode ser refém das suas próprias expectativas e ambições. Ninguém pode ocupar um cargo, com esse grau de responsabilidade, preocupado com recondução ou alçar a um outro cargo no âmbito do Estado. Isso acaba por minar a sua capacidade de se posicionar como um “player” naquele intricado sistema de freios e contrapesos. É fundamental não ficar preso a esse tipo de amarras.

Quarentena
Defendo que haja um elastecimento do prazo do mandato do PGR, que hoje é de dois anos, e que seja vedada a recondução. Isso elimina risco de tentativa de perenização no cargo, elimina mecanismos potencialmente inibitórios em face de uma expectativa de recondução. E a quarentena. O cargo não pode ser nem trapézio nem trampolim para nenhuma outra instituição.

Igrejas abertas na pandemia
O procurador-geral defendeu um ponto de vista e outro procurador pode sustentar uma outra percepção. Essa é a vantagem e a delicadeza da independência funcional. O constituinte foi sábio quando considerou isso um vetor importante para a instituição. Não existe hierarquia, no sentido de vincular posicionamentos em processos.

Fim das forças-tarefas
Fomos atropelados com o encerramento de todas as forças-tarefas e a criação de um novo modelo, dos Gaecos. Há muito já se falava, dentro da instituição, sobre a necessidade de pensar em um novo modelo. A questão não é acabar com uma força-tarefa ou com a Lava-Jato. É como isso se deu. Esse debate se encontra congelado no Conselho Superior.

Avaliação passional
É necessário que haja distanciamento no tempo para que se avaliem os erros e os acertos da Lava-Jato. Só isso vai permitir fazer uma avaliação menos passional.

Erros da Lava-Jato
A Lava-Jato desvelou um conjunto de relações antirrepublicanas entre o poder público e o setor privado. Houve a recuperação de bilhões de reais, de valores desviados. Esses fatos nós podemos colocar na cota dos acertos. Mas isso não significa que não houve erros. A ideia da criação de uma fundação para gerir recursos repatriados foi um deles.

Sergio Moro
Eu não vi nenhum procurador alçando cargo público, mas a ida do ex-juiz Sergio Moro para o governo pode ser computado como um ponto negativo. O juiz dos casos relativos ao maior escândalo de corrupção da história de repente é alçado a ministro, e passa a integra um governo que se elege a partir de uma crise política decorrente dos fatos que estavam sendo objeto de persecução no seu próprio juízo? Isso me parece muito estranho.

Ricardo Salles
O PGR deve instaurar um inquérito para apurar essa grave notícia trazida pelo delegado da Polícia Federal Alexandre Saraiva. Aras tem o dever e o poder de tomar essa iniciativa.