Título: O ventre da democracia
Autor: Oded Grajew
Fonte: Jornal do Brasil, 13/03/2005, Outras Opiniões, p. A15

Se é verdade, como advogam especialistas, que um bom atleta começa seu treinamento na barriga da mãe é possível dizer que um governo democrático nasce influenciado fortemente pelo ventre da democracia, isto é, pela legislação eleitoral sob cujo abrigo ele é eleito.

Estamos a dois anos de uma nova rodada de eleições majoritárias no país. É tempo suficiente, portanto, para transformar esse período no turno zero do próximo pleito, introduzindo mudanças na legislação eleitoral que condicionem desde já a conduta de políticos e partidos que vão governar o país depois de 2006.

As discussões sobre a fidelidade partidária, tanto quanto a definição de regras justas e equilibradas para a formação de alianças, são estágios relevantes desse processo. Mas nenhuma decisão será boa o suficiente para garantir a soberania do voto se a vulnerabilidade mais séria do nossos sistema, a falta de transparência no financiamento das campanhas, não for sanada.

Para que a democracia não resulte em mera rotatividade administrativa, ela não pode eternizar as relações econômicas prevalecentes na sociedade. Significa dizer, entre outras coisas, que a sustentação financeira dos partidos e candidatos não pode se apoiar em forças que por razões diversas possam, em troca de contribuições polpudas, subordinar políticas públicas a interesses privados.

Se para ter chances eletivas o candidato é empurrado a estabelecer vínculos de dependência com fontes subterrâneas de financiamento, então a lei vigente fere a regra de ouro do sistema republicano. Infelizmente, é o que acontece entre nós. Na prática, a legislação atual subordina a doutrina partidária ao aparato coletor, interpondo uma película de desconfiança e descrédito entre o cidadão e o poder transformador da política. Mais ainda, ela exacerba laços de conveniência entre o ''caixa dois'' do mercado e a ''caixa preta'' de políticos inescrupulosos. Nesse vale-tudo o eleitor vale quase nada.

O que acontece é que sem financiamento público, um tempo binário substitui os compromissos democráticos e passa a orientar a lógica de muitos mandatos. Os dois primeiros anos destinam-se a retribuir o financiamento da campanha vitoriosa; os dois seguintes, a preparar a receita da próxima. O contribuinte, portanto, perde muito mais, só que de forma dissimulada, em emendas e alocações orçamentárias de áreas estratégicas, destinadas a contemplar interesses unilaterais de financiadores.

Num país pobre como o nosso, com 121 milhões de eleitores, uma ínfima minoria contribui financeiramente para o processo eleitoral. No pleito de 1994, por exemplo, apenas 75 mil brasileiros fizeram doações de campanha.

O financiamento público não elimina todos os desafios de um regime democrático. Sempre se poderá alegar que apetites insaciáveis dos dois lados do balcão encontrarão formas de engordar o fundo público com doações sigilosas. É um risco plausível. Mas se um piso de transparência e, principalmente, um padrão de campanha a preços de mercado for explicitado, facilitará sobremaneira a fiscalização dos próprios partidos e da sociedade civil, que ganhará musculatura contábil e ética.

Romper a circularidade do nosso sistema político, de qualquer modo - seja através do financiamento público das campanhas, ou pelo uso mais freqüente dos instrumentos plebiscitários - significa ampliar o perímetro da democracia representativa, adicionando-lhe mecanismos modernos que ampliam a transparência e participação popular. Dificilmente, por razões óbvias, essa agenda ganhará prioridade no metabolismo do poder, onde hoje circulam as decisões políticas. Quem está no poder dificilmente quererá mudar as regras que o levaram a ser eleito. O sucesso ou o fracasso das duas iniciativas, portanto, dependerá sempre de uma ampla articulação da sociedade civil, capaz de transformá-las num projeto histórico que traduza os anseios de renovação democrática no século XXI.