Título: A criatividade da "nordestinidade"
Autor: Carlos Lessa
Fonte: Jornal do Brasil, 13/03/2005, Economia & Negócios, p. A24

No antigo Largo da Cancela, ocupando o interior do Pavilhão de São Cristóvão, existe um monumento vivo à espetacular e prodigiosa criatividade dos nordestinos e seus descendentes que, integrados, fazem parte da alma do Rio. Falo do Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. É um espaço criado pelos nordestinos-cariocas que atrai o povo do Rio com crescente fidelidade desde seus inícios, no começo dos anos 50. Todos os fins de semana, de sexta a domingo, entre 120 a 180 mil pessoas animam a Feira. Em um mês, o Centro atrai os visitantes de um ano do Corcovado. Em média, cada visitante da Feira gasta um pouco menos de R$ 20. O pavilhão projetado por Sérgio Bernardes tem 18 mil m². Desde setembro de 2003, é território organizado. Acolhe a Feira que historicamente ocupou o calçadão no entorno do edifício. No interior do pavilhão estão lotes para 664 barracas, 128 banheiros e dois grandes palcos para apresentações culturais e para a dança.

A Feira sempre me fascinou. Tive a felicidade de poder orientar a tese de Maria de Fátima Ribeiro, que pesquisou de forma rigorosa os antecedentes de memória oral, da literatura disponível e principalmente realizou uma exaustiva pesquisa de campo entrevistando 504 feirantes e barraqueiros. São 203 barracas que vendem produtos de terceiros. Dessas, 152 preparam refeições no lugar, 16 prestam serviço e 73 vendem produtos de fabricação própria. São 224 barracas restaurantes, lanchonetes e quentinhas ¿ 64 vendem roupas, 21 CDs, 69 artigos de bazar e 59 vendem produtos ¿nordestinos¿. Na Feira estão jogos eletrônicos, empresas transportadoras e um salão de beleza. Houve ao longo do tempo a multiplicação dos feirantes. Em 1996 foram identificados 500. Em 1999 já eram 721, com apenas 250 licenciados. Dos barraqueiros, 295 são nordestinos, 198 nasceram no sudeste, porém em sua maioria são filhos ou netos de irmãos nordestinos. Em sua maioria têm mais de 40 anos e 53% deles migraram para o Rio há mais de 20 anos. Mais de 50% deles são fiéis à Feira e nela trabalham no fim de semana há mais de 10 anos. É quase equivalente o gênero dos barraqueiros. Os homens superam as mulheres em muito pequena proporção. 77% dos barraqueiros trabalham três dias por semana. Além dos titulares, outras 2 mil pessoas são empregadas nas barracas. Apenas 5% têm carteira assinada. Em sua maioria são familiares ou conhecidos de longa data que ¿cooperam¿ com o feirante titular.

Maria de Fátima se preocupou em avaliar o grau de maturidade empresarial de cada feirante. Chegou à conclusão que a maioria ainda está a nível de ¿subsistência¿ ¿ ganha no fim de semana o que precisa para viver na semana. Algumas barracas cresceram e se consolidaram sem qualquer inovação significativa. Aproximadamente 60 ganharam escala e evoluíram para ¿médias empresas¿, notadamente restaurantes e comércio de carne-de-sol. Merece registro o empreendedorismo nordestino na retaguarda da Feira. São ¿fábricas¿ de bolachas, fabricante de carne-de-sol em Caxias com matadouro e frigorífico. São lavradores que produzem feijão-de-corda e farinha de goma no Espírito Santo. São ¿atacadistas¿ especializados em queijo de coalho, que trazem de Minas e Goiás. São criadores de pequenos animais. São confecções feitas em casa e por eles comercializadas nos bazares. São fabricantes artesanais de bolos e cocadas. Inequivocamente nordestina, a Feira depende destes empreendedores-feirantes residentes no Rio e em seus arredores. São produtos singulares do Nordeste fabricados por aqui. Folhetos de cordel, desafios de repentistas, boa música nordestina com sanfoneiros e violeiros. Cantadores decodificam as manchetes da mídia. O sincretismo é notável: o CD é sucesso; o jeans substituiu o couro; o vendedor de rosas percorre os restaurantes e na dança ¿pé no chão¿ nordestina oferece como alternativa o reggae e o funk.

O Nordeste impregna a Feira. O povo que conserva e cria para sobreviver, reproduz dinamicamente na Feira sua mansa informalidade. Pratica o emprego precário como solidariedade familiar e semitribal. Desenvolve finanças de ¿proximidade¿. Pratica um peculiar sistema de financiamento, em que compra a prazo sexta-feira para liquidar no domingo. É o povão nordestino mostrando sua criatividade e fidelidade às raízes.

A Feira nasceu após a segunda Guerra mundial como uma projeção do pau de arara. O caminhoneiro, além do transporte, era correio e realizava as encomendas. Surgiu o pano no chão para vender produtos singulares nordestinos que a saudade aspirava e a encomenda deixava sobra. Certamente houve troca direta e escambo. Porém o modelo transportado foi o da Feira no interior. Costume português do século XI, a Feira como rede mercantil e lugar de festa prosperou no Brasil rural. No Nordeste ganhou perfil sólido. Brotou na calçada de São Cristóvão. A folga do fim de semana é momento para os visitantes e barraqueiros para retornarem afetivamente ao Nordeste.

Nos anos 60 desapareceu o pau-de-arara. Surgiram o ônibus e a estação rodoviária. Porém, a Feira e a festa já estavam internalizadas nos corações dos nordestinos-cariocas. Foram surgindo aperfeiçoamentos. Foi exigido que a mercadoria fosse exposta em tabuleiros e barracas e não no chão. Em 1961 surgiu a União Beneficente dos Nordestinos, que se converteu em Associação de Proteção. A Feira foi legalizada em 1984. Em 1993, obteve boa iluminação elétrica. Surgiram os banheiros químicos. Foi fixada área de estacionamento. Organizadas a limpeza e a segurança. As barracas combinaram comida, bebida e música. Finalmente surge a Cocampo (Cooperativa dos Comerciantes da Feira de São Cristóvão) que administra o cotidiano da Feira, arbitra os conflitos e negocia com as outras instâncias. Opera como líder, segundo o padrão clássico de coronelismo interiorano.

A Feira, a festa e o lazer são desdobramentos da nordestinidade: do imenso amor e compromisso que o nordestino tem com seus costumes e seus irmãos. Tem necessidade visceral de conviviabilidade. Cada visitante busca na Feira uma referência identitária grupal: lá é amigo, conhece e é reconhecido. O nordestino que ¿só deixa seu Cariri no último pau-de-arara¿ de forma criativa o levou consigo e o implantou em São Cristovão. Exerce a memória como uma vivência agradável e feliz. Cria a partir do quase nada o lugar de confraternização. Dança no quintal, brinca, ri, não abre mão de sua memória e está aberto ao moderno.

A Feira é um importante arranjo produtivo local onde o nacional é sublinhado. Jamais será vendida a qualquer cadeia de ¿shopping centers¿. É um empreendimento coletivo que pratica uma cooperação original. É aberto à expressão individual. É um paradigma reproduzível. No Grande Rio, na favela da Rocinha e no município de Caxias estão em evolução e consolidação duas outras feiras. Creio que São Paulo, a maior cidade nordestina do Brasil, deveria buscar inspiração em São Cristóvão. Acho que o Eixo Monumental de Brasília ganharia brasilidade tendo maior franquia à criatividade nordestina. Quero felicitar a Petrobras por ter bancado dois CDs do Forró na Feira. Quero sugerir que outros estados nordestinos copiem a semana que o Governo de Alagoas propiciou em São Cristóvão. E termino parafraseando João Ubaldo: ¿Viva o criativo povão nordestino¿.