O Estado de São Paulo, n. 46493, 01/02/2021. Internacional, p. A8

Pandemia continuará se todos não receberam a vacina
Fareed Zakaria
01/02/2021



Se os países pobres também não forem imunizados, o vírus continuará vivo, sofrendo mutações e causando surtos pelo mundo

Todos conseguimos enxergar os contornos de um mundo pós-pandemia. Com relatos da vacinação se intensificando nos Estados Unidos e no Reino Unido, e com Israel e os Emirados Árabes Unidos correndo em direção à imunidade de rebanho, é fácil imaginar que um retorno à normalidade estaria no horizonte. A única pergunta parece ser: quanto tempo levará?

Mas talvez tenhamos diante de nós uma falsa aurora. Apesar do incrível progresso que fizemos com as vacinas, a verdade é que a trajetória atual praticamente garante que jamais conseguiremos de fato derrotar o coronavírus. Ele permanecerá vivo e seguirá sofrendo mutações e causando surtos pelo mundo. Daqui a anos, é possível que os países enfrentem novos surtos que trarão escolhas difíceis entre novos lockdowns ou novas ondas de doença e morte.

O problema básico está na distribuição da vacina pelo mundo – não com base em onde ela é mais necessária, e sim onde há mais dinheiro. Os países mais ricos pagaram por centenas de milhões de doses, com frequência muito mais do que o número necessário. O Canadá, por exemplo, encomendou o suficiente para aplicar cinco doses em toda a sua população de 38 milhões de habitantes. Enquanto isso, os 200 milhões de habitantes da Nigéria não receberam uma única dose da vacina.

Os países ricos abrigam 16% da população mundial, mas adquiriram 60% das vacinas. Em artigo recente publicado na Foreign Affairs, Thomas Bollyky e Chad Bown destacaram que Austrália, Canadá e Japão tiveram menos de 1% dos casos de coronavírus do mundo, mas compraram mais doses do que toda a América Latina e o Caribe, que tiveram mais de 17% dos casos.

Mesmo que vários países africanos tenham sido usados nas pesquisas das vacinas, quase nenhum país subsaariano recebeu vacinas em quantidade significativa, enquanto 40 milhões de doses já foram aplicadas nos países ricos. Pesquisadores da Universidade Duke dizem que muitos países em desenvolvimento não serão totalmente vacinados antes de 2024, o que significa que o vírus terá anos para se espalhar e sofrer mutações. Em sua carta anual, Bill e Melinda Gates destacam que países de rendas baixa e média só terão vacinado um quinto de sua população até o fim de 2021. "Gostemos ou não", escrevem eles, "estamos nessa juntos".

O problema vai muito além da saúde pública. A Câmara Internacional do Comércio divulgou um estudo mostrando que a vacinação desigual no mundo criará prejuízos econômicos da ordem de US$ 1,5 trilhão a US$ 9,2 trilhões, e metade disso pode recair sobre os países mais ricos. Analisando dados de 35 indústrias de 65 países, o estudo concluiu que a economia mundial é tão interligada que, se grandes regiões ainda sofrerem com a covid-19, o resultado seria a formação de gargalos, fricções e perda de demanda que afetariam a todos em todo lugar. Outro estudo estima que, para cada dólar investido pelos países ricos em vacinas nos países em desenvolvimento, eles receberiam em troca cerca de US$ 5 em produtividade econômica.

Apesar dessas realidades, o nacionalismo com as vacinas só está aumentando, com o baixo estoque e os atrasos burocráticos nos países ricos levando os políticos a exigir medidas aceleradas para suas populações. A Alemanha sugeriu que a União Europeia limite a exportação da vacina da Pfizer. A UE fez ameaças a outro laboratório, Astrazeneca, por suspeitar que a entrega de vacinas ao Reino Unido teve prioridade em relação à UE (a empresa nega). Dezenas de países também restringiram a exportação de suprimentos médicos, o que poderia prejudicar muito os esforços para erradicar a covid-19 do mundo.

É perfeitamente compreensível que os países ricos queiram vacinar primeiro as próprias populações. Mas há uma maneira de agir com racionalidade e sensibilidade sem monopolizar vacinas, criando políticas que garantam a erradicação da doença mais rapidamente em todo o mundo.

Bollyky e Bown apresentam um plano excelente na Foreign Affairs. Eles destacam que os EUA deveriam usar as lições da Operação Warp Speed (velocidade de dobra) para intensificar a produção e distribuição global de vacinas. O país poderia criar uma coalizão internacional como a formada para combater a aids na África. Há agora uma iniciativa global de vacinação chamada Covax, para ajudar os países em desenvolvimento, oferecendo uma poderosa estrutura para a ação. O expresidente Donald Trump se recusou a participar da iniciativa, apesar da adesão de mais de 180 países, mas o presidente Biden reverteu essa decisão. Ele pode ir além, usando a iniciativa para demonstrar a capacidade única dos EUA de unir os países em torno de um problema em comum, de captar os recursos necessários – e solucionar o problema mais urgente enfrentado pelo mundo.