Título: Luz uruguaia
Autor: Aloizio Mercadante
Fonte: Jornal do Brasil, 14/03/2005, Outras Opiniões, p. A11

''Creo que he visto una luz al otro lado del río'' Jorge Drexler

Trata-se não apenas de singular vitória eleitoral, mas também de verdadeira revolução política naquele país vizinho. Pela primeira vez na história, o povo uruguaio leva ao cargo máximo da república, em primeiro turno, um autêntico representante da esquerda.

Significativamente, Tabaré Vázquez assumiu o poder na República Oriental do Uruguai exatos 190 anos após a entrada triunfal do general José Artigas em Montevidéu, que começou a consolidar o processo de independência daquele país e inaugurou o período conhecido como Patria Vieja, época de ouro dos orientales. De outra forma mas com a mesma intensidade, o novo presidente do Uruguai também fez uma entrada triunfal em Montevidéu, numa festa muito parecida com a ocorrida na posse de Luiz Inácio Lula da Silva, e à qual compareceram milhares de entusiasmados patriotas e mais de 130 delegações estrangeiras.

Pude sentir ao vivo o pulso do bravo povo uruguaio e constatei a grande esperança que ele deposita em Tabaré Vázquez. Tal esperança é proporcional à frustração causada por anos de políticas neoliberais, que agravaram a crise da dívida externa uruguaia, a qual hoje ascende a mais de 40% do PIB, e colocaram, no ano passado, cerca de 21% da população do Uruguai abaixo da linha da pobreza. Este último indicador é inusitado numa nação que, por sua longa estabilidade institucional e seu alto desenvolvimento social, ficou conhecida na primeira metade do século passado, com justiça, como a ''Suíça da América Latina''. Infelizmente, o Uruguai também não foi poupado dos efeitos deletérios ocasionados pela globalização excludente em nossa região.

Portanto, se a esperança é grande, a responsabilidade é ainda maior. Com efeito, atender às múltiplas e complexas demandas socais e conciliá-las com políticas que não sacrifiquem a estabilidade macro-econômica é o desafio maior que os governos de centro-esquerda dos países que compõem o novo ''arco virtuoso'' da América do Sul (Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e Venezuela) têm de enfrentar. Trata-se de desafio difícil de ser vencido, mas que é imperioso para o êxito desses governos. Sensível a este desafio, o governo de Tabaré Vázquez já anunciou o Panes (Plan de Atención de la Emergencia Social), plano semelhante ao Fome Zero do presidente Lula, e que incorpora diversos programas dirigidos ao atendimento emergencial das múltiplas necessidades básicas da população uruguaia em situação de indigência.

Entretanto, a sinergia política propiciada pela confluência desses governos progressistas abre espaços para uma cooperação mais ativa que deverá contribuir para soluções concertadas de problemas comuns. O governo do presidente Lula está solidamente empenhado em fortalecer o Mercosul, recuperando seu sentido estratégico original e transformando-o em elemento catalisador da tão sonhada integração da América do Sul. A conformação de espaço comum econômico, social e político na região permitiria aos nossos países inserção soberana no processo de globalização e lhes daria maior peso específico no cenário internacional e maior capacidade negociadora em foros hemisféricos e mundiais.

Assim, a aposta estratégica no Mercosul e na integração da América do Sul é, paradoxalmente, uma aposta na autonomia e soberania individual das nossas nações. Em contraste, a ênfase numa integração assimétrica em âmbito hemisférico ou em acordos bilaterais que limitam a capacidade dos Estados de implementar políticas de desenvolvimento tenderá, inevitavelmente, a reduzir a soberania de nossos países, já tão ameaçada pelos imperativos da globalização financeira. O governo de Tabaré Vázquez compartilha dessa visão estratégica e já em seu discurso de posse o novo presidente deixou claro que o Uruguai, coerentemente com seu formidável histórico de luta por independência e autonomia, adotará política externa independente, com ênfase em ''mais e melhor Mercosul''.

Acendeu-se uma luz em nosso vizinho, uma luz de esperança e solidariedade que deverá iluminar o Mercosul e guiar o pequeno Uruguai rumo ao seu grande destino de país próspero, justo e soberano. Acendeu-se de novo a luz de Artigas, que deverá fundar a Patria Nueva. Do Brasil, olharemos para ela com imenso respeito e indisfarçável alegria.

Aloizio Mercadante é economista, professor licenciado da PUC e da Unicamp e líder do governo no Senado Federal