O Estado de São Paulo, n. 46827, 01/01/2022. Política, p. D2

Uma nova chance para o País reavaliar as suas escolhas
José Fucs
01/01/2022



Mesmo se 'terceira via' não decolar, centro deverá definir as eleições como fiel da balança

Com as eleições de 2022 logo ali, em 2 de outubro, o País terá a chance de reavaliar mais uma vez as suas escolhas e de redefinir – ou não – a rota seguida nos últimos anos. Será também uma oportunidade de decidir se o papel de timoneiro deverá caber novamente ao presidente Jair Bolsonaro, provável candidato à reeleição, ou se é melhor apeá-lo do cargo, democraticamente, e eleger um concorrente para substituí-lo.

Embora o pleito envolva a escolha de 27 governadores, 27 senadores, 513 deputados federais e mais de mil deputados estaduais, é na Presidência que as atenções se concentram, não só pelo caráter nacional da disputa como também pelo papel de protagonista desempenhado pelo presidente da República, no regime presidencialista adotado pela Constituição de 1988.

Mesmo que ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) atribuam à Corte o papel de Poder Moderador da República, sem qualquer amparo constitucional, e que o Congresso tenha adquirido uma força crescente nas últimas legislaturas, tornando a eleição dos parlamentares decisiva para o futuro do País, o presidente ainda tem a caneta na mão – e isso continua a ter um peso considerável no sistema político brasileiro.

Apesar de o termo "presidencialismo de coalizão", cunhado pelo sociólogo e cientista político Sérgio Abranches, ter uma conotação negativa, por sugerir uma perda indevida de poder do presidente para o Congresso, a construção de uma base parlamentar para aprovação de matérias de interesse do Executivo deve ser vista, segundo alguns analistas, como um sinal de maturidade democrática. "No multipartidarismo fragmentado como o nosso, o presidencialismo tem de ser 'de coalizão' ou não é democrático", afirma o também cientista político e sociólogo Antonio Lavareda.

Em meio à polarização política do País, uma parcela da sociedade teme que os pendores autoritários de Bolsonaro, realçados em supostas ameaças às instituições e em declarações relacionadas a uma possível resistência à entrega do poder, em caso de derrota nas urnas, possam colocar em risco, de alguma forma, o processo eleitoral. Mas o fato é que o Brasil chega em 2022 à nona eleição presidencial seguida, um recorde desde a Revolução de 1930, com a democracia mostrando uma resiliência que se sobrepôs até agora a qualquer bravata totalitária.

FANTASIA. "Se a gente fizer um balanço do que falaram contra o Bolsonaro em 2021, vamos ver que muita coisa não tinha base real", diz o cientista político e comentarista Fernando Schüler. "Disseram, por exemplo, que teria havido uma tentativa de golpe na manifestação de 7 de setembro e que haveria uma invasão do STF e do Congresso. Era pura fantasia, um exercício do que o (escritor italiano) Umberto Eco chamaria de 'irrealidade'. Agora, pergunta se dois, três dias depois, alguém disse 'olha, nós nos enganamos'. É claro que não."

O que se pode afirmar com segurança é que há um risco concreto de que a campanha seja uma das mais agressivas de que se tem notícia e possa até descambar para a violência. "Tudo indica que teremos a eleição mais sanguinolenta desde 1989", afirma o historiador e comentarista político Marco Antonio Villa.

Não vamos nos iludir. Em uma campanha que promete se desenrolar em altíssima voltagem, vai haver muito jogo sujo, fake news, divulgação de pesquisas feitas sob encomenda pelos candidatos e insultos para todos os lados, nos palanques, no horário eleitoral e nas redes sociais, mesmo com a posição vigilante da Justiça Eleitoral. "O meu temor é de que o processo eleitoral descambe para uma guerra", diz Villa.

Oficialmente, a campanha só começa em 16 de agosto, com o término do prazo para registro das candidaturas na Justiça Eleitoral, mas as principais candidaturas já estão sendo definidas e o debate já está nas ruas, em meio ao recrudescimento da pandemia, que teima em postergar o seu fim.

Hoje, a grande questão que está em pauta e que deverá perdurar ao longo da campanha, é se a disputa será mesmo polarizada em Bolsonaro e Lula, o eterno candidato do PT à Presidência, como apontam as pesquisas, ou se algum dos précandidatos da chamada "terceira via" vai ganhar corpo e se habilitar a disputar o segundo turno do pleito.

CENTRO. Embora as chances de que um nome da terceira via consiga quebrar a polarização Bolsonaro/lula pareçam remotas no momento, quem apresenta o maior potencial de crescimento na preferência popular, de acordo com as pesquisas, é o ex-juiz e ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro, que se filiou ao Podemos no início de novembro.

Para chegar lá, Moro terá de conquistar votos nas fileiras de Bolsonaro e atrair o apoio de pré-candidatos menos cotados da terceira via, como o governador paulista, João Doria, do PSDB, o cientista político Luiz Felipe d'avila, do Novo, e os senadores Rodrigo Pacheco, do PSD, e Simone Tebet, do MDB. O único pré-candidato da terceira via que, provavelmente, não deverá engrossar uma eventual aliança com o ex-juiz da Lava Jato, caso ele confirme a sua liderança no grupo, é o ex-governador do Ceará e ex-ministro Ciro Gomes, do PDT, seu desafeto.

Ciente de que o centro pode ser o fiel da balança, como já aconteceu em outras eleições, inclusive na de 2018, Lula costura uma aliança considerada improvável até pouco tempo atrás com o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin, que deixou o PSDB e deverá se filiar ao PSB.

Com a vitória de Doria nas prévias tucanas, a ala histórica do partido, composta pelo expresidente Fernando Henrique

Cardoso, pelos senadores José Serra e Tasso Jereissati e, de certa forma, pelo próprio Alckmin, que não se identificam com o governador paulista, voltou a alimentar o sonho de unir as duas vertentes da social-democracia brasileira, representadas por eles mesmos e pelo PT. A proposta de união das duas correntes chegou a ser ventilada anos atrás e até recebeu informalmente o nome de "Partido Lilás", mas não avançou na época por resistência de Lula.

Bolsonaro, por sua vez, procura atrair o apoio de forças de centro-direita por meio de alianças com partidos tradicionais, que fazem parte do Centrão, como o PP, do deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, e o PL, do ex-deputado Valdemar Costa Neto, ao qual ele se filiou há cerca de um mês. "O que fez o Bolsonaro ganhar em 2018 não foi o bolsonarismo. Foi o centro", diz o cientista político Lucas de Aragão, da Arko Advice, uma consultoria de Brasília. "O bolsonarismo o colocou em pé, deu a ele visibilidade. Talvez possa até tê-lo colocado no segundo turno. Mas a vitória dele veio com o apoio do centro."

ELEITOR RACIONAL. Diante do atual cenário político, econômico e social, marcado pela combinação indigesta de estagnação da economia com repique da inflação, juros em alta, furo no teto de gastos, desemprego elevado, renda em queda e aumento da desigualdade, há uma expectativa, alimentada por setores da elite econômica e intelectual, de que a campanha deveria se concentrar no debate de propostas efetivas, para o eleitor fazer a sua escolha de forma consciente e fundamentada. "Tenho insistido que os partidos e os candidatos precisam apresentar esses programas para que a sociedade possa escolher", afirma o ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura, Antonio Delfim Netto.

De acordo com analistas ouvidos pelo Estadão, porém, é improvável também que isso aconteça, o que aumenta o risco de a eleição ser decidida, outra vez, com base em fato

res de menor relevância, que pouco têm a ver com o que o eleito fará no governo. "Tudo indica que, no processo eleitoral de 2022, as grandes questões nacionais não serão o centro das atenções", diz Villa. "Vamos perder uma ocasião fantástica para discutir os problemas e conhecer as soluções apontadas pelos diferentes candidatos."

A percepção de Fernando Schüler é semelhante. Para reforçar sua visão, ele cita o livro The myth of the rational voter (O mito do eleitor racional), do cientista político Bryan Caplan, no qual o americano afirma que a ideia de que o eleitor médio está disposto a debater programas de governo não passa de wishful thinking (pensamento positivo). "Na campanha eleitoral, a complexidade das propostas é aplainada e substituída por grandes narrativas. No fim, uma delas se torna hegemônica e ganha as eleições", diz Schüler.

DIÁLOGO. De qualquer forma, independentemente de quem ganhe a disputa presidencial deste ano, a expectativa é de que, em 2023, ao tomar posse, o vencedor busque desde o princípio o diálogo com o Congresso, para que o País retome, enfim, o desenvolvimento sustentável, que é a base para a prosperidade geral e para a melhoria dos serviços públicos, como educação, saúde e segurança, prestados à população. "Goste-se ou não, o Brasil é multipolarizado na questão da influência. Muita gente manda no Brasil", diz Lucas de Aragão. "Talvez em função da intensa polarização dos últimos anos, os principais candidatos estejam dando sinais de que estão dispostos a construir o diálogo com forças que pensam diferente deles. Se isso não acontecer, a agenda não vai avançar."