O Estado de São Paulo, n. 46827, 01/01/2022. Ciência, p. D10

Vacina reduz perigo, mas variante expõe risco de baixar a guarda
Júlia Marques
01/01/2022



Desafio de frear a Ômicron reforça urgência de rastrear mutações e reduzir desigualdade global na imunização; dizer adeus à pandemia em 2022 não é certeza

A incerteza está sempre presente em um contexto de pandemia, mas uma linha de pensamento entre virologistas e biólogos evolutivos traça um caminho um pouco menos pedregoso daqui para frente. Estamos em um momento diferente. O ano de 2022 pode não trazer a notícia do fim da pandemia de covid-19, como se espera, mas aprendizados acumulados em dois anos e o desenvolvimento de vacinas dão aos países mais ferramentas para começar a domar o Sars-Cov-2. Tudo dependerá de estratégias de rastreio e imunização. E as iniciativas terão de ganhar escala, sob risco de colocar a perder os avanços até agora.

Em dezembro, a constatação de que a Ômicron, nova variante do vírus, avançava por África, Europa e Estados Unidos com rapidez sem precedentes jogou um balde de água fria nas perspectivas mais otimistas de decretar o fim da pandemia nos próximos meses. Além disso, projetou a sombra de novas mutações que podem estar a caminho.

Debelar a Ômicron e impedir o surgimento de outras variantes serão alguns dos principais desafios de 2022. Para o Brasil, em vantagem na disputa contra a covid nos últimos meses diante da alta adesão à vacinação, as mutações podem representar uma virada de jogo – a favor do vírus.

Em novembro, a Ômicron foi classificada como variante de preocupação pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Significa que tem potencial de causar impacto na saúde global, como fizeram a Delta e a Gama, esta responsável pela explosão de mortes no Brasil no primeiro semestre de 2021.

Especialistas afirmam que a Ômicron pode, sim, causar estragos por onde avançar nos primeiros meses de 2022 – o que ainda não se sabe é o tamanho do impacto. Países com aumento de infecções voltaram a impor restrições – houve fechamento do comércio e até ordem para reduzir o número de pessoas em confraternizações. A gravidade da doença provocada pela variante ainda é desconhecida e o temor é de sobrecarga nos hospitais.

A trajetória do vírus no exterior deve servir de alerta para que o Brasil prepare o seu sistema de saúde, em meio à estafa dos profissionais de saúde e a surtos de outras doenças, como a gripe. Também será preciso monitorar o avanço da variante e, mais do que nunca, acelerar a vacinação em 2022 – com aumento da imunidade dos mais vulneráveis e alcance de crianças, ainda desprotegidas. A vacinação dessa faixa etária, no entanto, é motivo de embates: mesmo após aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o governo federal demora para começar a aplicação de doses.

Também é necessário, agora, alterar os critérios que fazem o País acender a luz amarela para a covid, diz o virologista Fernando Spilki. Até então, governos locais tomaram decisões de flexibilizar ou restringir atividades com base em hospitalizações e mortes. Com boa parte da população vacinada, usar esses mesmos parâmetros pode levar gestores a minimizar impactos do vírus num primeiro momento.

“Há cada vez mais infecções sem sinal clínico. Não podemos esperar aumentar a internação. É o momento de intensificar o monitoramento, diagnosticar, examinar contatos mesmo em indivíduos vacinados para cercar o vírus”, diz Spilki, da Universidade Feevale e membro do comitê de especialistas da Rede Vírus, do Ministério da Ciência e Tecnologia.

O Brasil ampliou sua capacidade de testagem. Em setembro, lançou um plano de distribuição de testes de antígeno – exames que mostram os resultados em poucos minutos. Mas ainda há distância entre ter bons testes à disposição e ter estratégias de testagem. Nem sempre quem procura o posto de saúde consegue fazer o exame imediatamente.

Outro desafio é transformar os laudos em ações. “O (paciente com) resultado positivo tem de ser monitorado e ficar isolado. Os contatos também têm de ser testados com frequência. Desde março de 2020 se fala, mas não se faz isso bem, o que pode ajudar na disseminação”, diz Marilda Siqueira, chefe do Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz.

Com promessas de ampliar a testagem desde o início da pandemia, o Ministério da Saúde informou que manterá o plano de expansão da oferta de exames em 2022 e que o objetivo é “promover isolamento, rastreamento e testagem dos contatos, que também devem fazer quarentena”. A testagem, diz a pasta, deve ser usada ainda na apuração de surtos locais, como escolas.

Além disso, segundo Marilda, é importante aprimorar a vigilância genômica, o que significa saber quais variantes estão em circulação e onde. Essa informação fornece pistas até mesmo para avaliar a resposta das vacinas às mutações. Estudos com a Ômicron, por exemplo, já mostraram que imunizantes em uso parecem ser eficazes para evitar casos graves e mortes, mas sofrem um golpe na capacidade de prevenir infecções. Pesquisas sugerem que uma 3ª dose ajuda a recompor a barreira de anticorpos.

Oferecer doses adicionais deve ser a estratégia de boa parte dos países – incluindo o Brasil – para reduzir a transmissão e evitar mortes. Em 2022, está prevista a 3ª dose para boa parte dos adultos brasileiros e a 4ª já foi anunciada a imunossuprimidos, como transplantados e pacientes com câncer. Países como França e Itália também apostam no reforço com intervalo reduzido – em alguns casos de até três meses (no Brasil, são quatro).

Já a adaptação de vacinas aprovadas para torná-las mais eficazes contra variantes segue no horizonte e a estratégia pode ser usada caso se conclua que o escape às mutações aumentou. Do ponto de vista científico, não há dificuldades – o desafio seria produzir e distribuir a nova leva de vacinas.

SUPERAR DESIGUALDADES

Se por um lado os países contam com a dose extra para proteger mais, por outro, a existência de áreas sem qualquer imunização desprotege toda a população mundial e afasta a chance de vencer o Sars-Cov-2 em 2022. “Estamos jogando roleta russa com o vírus”, diz a epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Instituto Sabin, nos Estados Unidos. “A desigualdade favorece o aparecimento de novas variantes.” Por isso, mais do que dar reforços, 2022 terá de ser o ano de melhorar o acesso a vacinas.

Para a OMS, alcançar o fim da pandemia em 2022 depende de “garantir que 70% da população de todos os países esteja vacinada em meados de 2022”, disse o diretor geral da organização, Tedros Ghebreyesus. A taxa está longe de ser alcançada: menos de 50 países tinham essa cobertura no fim de 2021 e, na África, só 9% da população está vacinada.

Acelerar a produção de imunizantes e a distribuição aos países pobres deve estar entre as metas. Em 2021, a Covax Facility, aliança internacional conduzida pela OMS para distribuir imunizantes, entregou 790 milhões de doses a 92 países – abaixo do objetivo de 1,3 bilhão. Além disso, experiências em 2021 mostraram que apenas entregar vacinas a países pobres não é suficiente.

“Uma campanha não depende só de ter seringa e agulha. É preciso centrais de armazenagem, geladeiras monitoradas nos postos. Parece simples, mas não é”, diz Marilda, que integra o grupo consultivo técnico da OMS. Nações pobres demandam apoio logístico. Já doações de imunizantes perto do prazo de validade, como em 2021, criam desafios extras. Na Nigéria, centenas de milhares de doses doadas venceram sem chegar a nenhum braço.

Ao mesmo tempo em que cresce a necessidade de estratégias globais para repartir recursos disponíveis, tecnologias em teste fazem aumentar a esperança de ter à disposição mais – e ainda melhores – vacinas, além de remédios que de fato funcionem. No fim de dezembro, a agência reguladora americana aprovou o uso emergencial de uma pílula da Pfizer, cujos testes apontaram risco de morte 89% menor. Outras farmacêuticas também obtiveram resultados promissores. Opção para aqueles que, apesar da vacina, tenham adoecido, os medicamentos precisam ter custo mais baixo do que os que estão disponíveis para, de fato, se popularizarem nos hospitais.

Já para a segunda geração de vacinas, a expectativa é de tecnologias “à prova de variantes” e fáceis de administrar – há até propostas de imunizantes em forma de pílulas, uma pedida para quem tem medo de agulhas. No fim de 2021, em meio ao avanço da Ômicron, o primeiro imunizante da segunda geração entrou no cardápio: a vacina da americana Novavax foi autorizada para uso emergencial pela OMS. No Brasil, seis candidatas tiveram bons resultados nos primeiros testes e devem avaliar a eficácia em humanos em 2022.

“A vacina dos meus sonhos seria a que, além de proteção contra hospitalização e morte, conseguisse diminuir mais a transmissibilidade do vírus”, diz a médica Rosana Richtmann, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas. Vacinas esterilizantes, que existem para doenças como sarampo, são consideradas o “Santo Graal” da imunização porque impedem o vírus de entrar nas células. Enquanto cientistas tentam marcar mais esse gol, é possível – com as vacinas à disposição – se não eliminar, pelo menos controlar a covid.

E chegar ao ponto de transformar a pandemia em uma endemia: quando o vírus circula em níveis esperados, em determinadas regiões. Por ora, especialistas têm dificuldade de prever quando isso ocorrerá. E, até que os indicadores mostrem a covid sob controle, os cuidados devem continuar. “Não consigo imaginar 2022 sem máscara em ambientes fechados, onde não se consegue fazer distanciamento”, diz Rosana. “Ainda não vai dar para relaxar.”.

A incerteza está sempre presente em um contexto de pandemia, mas uma linha de pensamento entre virologistas e biólogos evolutivos traça um caminho um pouco menos pedregoso daqui para frente. Estamos em um momento diferente. No Brasil, com a variante Ômicron, ainda poderemos ver aumento de casos e, consequentemente, de hospitalizações e mortes, mas jamais como a onda que tivemos no início de 2021, graças à vacinação de boa parte da população.

Do ponto de vista das flexibilizações, caminhamos para o retorno a uma certa normalidade, em movimento baseado nos índices epidemiológicos do Brasil. É natural que seja assim: temos de tentar sair da caverna se a situação permite. O que nos dá um pouco mais de segurança é que hoje, ao contrário de dois anos atrás, sabemos o que fazer. Se houver recrudescimento da condição epidêmica, é possível voltar um passo atrás.

No entanto, para que não seja preciso retroceder, ainda são necessários cuidados. Não adianta voltar a viver como antes e tirar a máscara porque isso cria uma situação propícia à disseminação viral. E sabemos que esse vírus surfa nas oportunidades que damos a ele. O Sars-Cov-2 é muito bom no que faz.

Apesar do potencial do Sars-Cov-2, boa parte dos especialistas – e me incluo nesse grupo – acredita que há uma tendência evolutiva de adaptação dos vírus ao hospedeiro, com redução da letalidade. O Sars-Cov-2 tem pouco tempo de evolução conosco, está “aprendendo” a conviver com humanos e é bastante virulento. O caminho é chegar a um certo equilíbrio, em que o vírus se dissemina rapidamente, mas sem causar tantas mortes ou doenças graves, como ocorreu com a gripe. Não sabemos se isso ocorrerá com a covid em 2022. Acredito que não, mas está próximo de ocorrer.

Em 2022, ainda devemos ter situação de pandemia, principalmente por causa do surgimento de variantes descontroladas, o que tem relação com baixas coberturas vacinais em inúmeros bolsões. Uma coisa é certa: onde há baixa cobertura vacinal, o vírus se multiplica mais e surgem mutações. O risco de uma mutação ser selecionada e se transformar em variante é enorme onde a pandemia corre solta. É estratégico, portanto, que 2022 seja focado nesses países e que essa discussão saia do campo semântico para alcançar a prática.

Além da necessidade de cobrir a maior parte da população, será preciso dar novas doses de vacinas nos próximos anos. Certamente teremos vacinação contra a covid-19 por muito tempo. Os imunizantes vão ser atualizados para responder às variantes, como já acontece para a gripe, e ficarão no nosso “cardápio”. A boa notícia é que no Brasil, no ano que vem, provavelmente vamos ter uma vacina desenvolvida no País. Uma das candidatas nacionais deve ter sucesso nos testes clínicos que começam em 2022 e isso será um marco para nossa autonomia.