O Estado de São Paulo, n. 46831, 05/01/2022. Política, p. A10

A chegada de Mendonça abre novo campo de disputa no Supremo
Weslley Galzo
05/01/2022



Com mandatos longevos, indicados por Bolsonaro podem mudar correlação de forças na Corte, segundo analistas

A chegada de André Mendonça ao Supremo Tribunal Federal (STF) consolida o movimento do presidente Jair Bolsonaro de indicar ministros de idade baixa, isto é, com mais possibilidade de exercer mandatos longevos, e alinhados politicamente na mais alta instância do Poder Judiciário. Com decisões monocráticas, Mendonça e seu colega Kassio Nunes Marques, outro indicado pelo presidente, devem representar um novo campo de disputas internas na Corte.

Bolsonaro já disse que com os dois o STF passa a ter 20% daquilo que ele gostaria que fosse decidido. Caso seja reeleito, poderá indicar, em 2023, os substitutos de Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Escolhidos pelos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, os ministros adotaram posicionamentos mais progressistas na Corte.

O professor de direito constitucional Wallace Corbo, da FGV-RIO, avalia que a eventual formação de uma ala bolsonarista teria como efeito prático dobrar as chances do governo de receber decisões individuais a seu favor, em vez de conseguir formar maioria no plenário. Para isso, será necessário que os processos caiam na mão de Mendonça e Nunes Marques.

INDIVIDUAL. Outro aspecto seria a possibilidade de bloquear com ainda mais força e menos desgaste pessoal julgamentos de interesse do governo, por meio de pedidos de vista (mais tempo para análise). "O Supremo tem decidido nas últimas décadas de maneira atomizada, individualista. Desse ponto, a chegada de André Mendonça não é só a existência de mais um entre onze, é a multiplicação por dois das chances do governo no tribunal", diz Corbo.

Até o momento, Nunes Marques, na Corte desde 2020, tem capitaneado a ainda incipiente ala bolsonarista. O ministro já causou descontentamento entre seus pares por impor decisões monocráticas e votar de forma recorrente a favor de Bolsonaro, como na vez em que liberou a realização de cultos e missas, no auge da segunda onda de covid-19, em abril do ano passado.

"As decisões de Nunes Marques que envolvem interesses do governo têm sido no sentido de convalidar as posturas do presidente, ou até mesmo sustentar a impossibilidade do Judiciário atuar de diversas formas nessas políticas adotadas por Bolsonaro", avalia Corbo.

Outro movimento de Nunes Marques tem sido suspender os julgamentos de interesse do governo, sobretudo quando não há direção clara se haverá vitória. Em setembro, ele pediu vista em 14 ações que discutem decretos e atos do governo para flexibilizar a compra e registro de armas e munições.

"Se for possível falar em um grupo bolsonarista, essa ala entra com uma perspectiva própria, que não é especificamente voltada à luta contra corrupção e a prática de crimes, mas algo mais voltado para proteger o governo", afirma Corbo.

IDADES. Nunes Marques tem pela frente mais 26 anos de trabalho na Corte e Mendonça, mais 27, antes de completarem a idade limite de 75 anos de idade.

Para o professor de direito João Echeverria, a mudança de funcionamento do STF, com menos decisões tomadas em plenário, dificulta a formação de alas fixas. "Temos cada ministro atuando de forma independente com força e poder de posições monocráticas no dia a dia do exercício das suas atividades. É difícil formar alas", avalia. Ele destaca, porém, que isso não impedirá Mendonça e Nunes Marques de seguirem o posicionamento do governo.

Com o fim da Operação Lava Jato e a ascensão do bolsonarismo, o STF deixou de ter divisões internas bem definidas nos julgamentos para dar lugar a posições independentes e coalizões ocasionais. O cenário que passou a prevalecer é de coesão nos momentos de ataque aos ministros. Em setembro, por exemplo, no dia seguinte às manifestações antidemocráticas convocadas por Bolsonaro para o Dia da Independência, o presidente da Corte, Luiz Fux, falou em nome de todos os integrantes que não seriam toleradas ameaças à autoridade das decisões judiciais. 

Um ano atrás, parecia razoável esperar que, já no início de 2022, estaríamos falando na covid usando o pretérito, ao menos enquanto grande problema de saúde e qualidade de vida. Vacinas eficazes foram desenvolvidas com velocidade milagrosa; certamente, um país sofisticado como os EUA encontraria uma maneira de distribuir essas vacinas rapidamente.

Então, por que não superamos a pandemia? Parte do problema tem sido a criatividade da evolução do vírus. A variante Delta nos chocou com sua letalidade. Agora, a Ômicron nos choca com sua facilidade de transmissão. Ainda assim, poderíamos e deveríamos ter nos saído melhor. E a principal razão de não termos conseguido isso foi o poder das mentiras de motivação política.

Sei que não sou o único comentarista a enfrentar reações negativas por enfatizar a natureza partidária da resistência às vacinas. Somos constantemente lembrados que muitos americanos não vacinados não são fanáticos do Partido Republicano, que há diferentes motivos pelos quais as pessoas recusam as vacinas ou ainda não as procuraram. Tudo isso é verdadeiro, mas a política desempenhou um papel crucial.

Há três importantes mentiras repetidas pelos políticos republicanos e pela mídia de direita. Primeiro temos a alegação de que o coronavírus não seria nada de mais. Seria de se esperar que tal alegação já tivesse sido esquecida, levando em consideração que mais de 800 mil americanos morreram de covid desde que o radialista Rush Limbaugh comparou este vírus a uma gripe comum.

Mas tal ideia continua circulando. Figuras políticas como Marco Rubio fazem pouco da resposta à variante Ômicron descrevendo-a como "histeria irracional" porque parece provocar um número relativamente baixo de hospitalizações entre a população vacinada.

Em seguida: a alegação segundo a qual as vacinas são ineficazes. "Se a dose de reforço funciona, por que ela não funciona?" publicaram no Twitter os republicanos da Comissão de Justiça da Câmara.

O que eles querem apontar, supostamente, é o fato de a variante Ômicron produzir um imenso número de novas infecções, ao mesmo tempo ignorando cuidadosamente as evidências maciças de que mesmo quando os americanos vacinados são infectados, sua probabilidade de hospitalização (ou morte) é muito inferior à dos não vacinados.

Finalmente, temos a alegação de que tudo é uma questão de liberdade, e a decisão de tomar a vacina ou não deveria ser tratada como qualquer escolha individual. Por exemplo, o governo de Greg Abbott, no Texas, usou este argumento para impedir o governo federal de obrigar o uso de máscaras.

Leitores atentos terão notado que, além de falsas, essas alegações republicanas se contradizem. Podemos ignorar a covid graças às vacinas, que por falar nisso não funciona. Vacinar-se é uma decisão individual, mas oferecer informações necessárias para que tomem tal decisão com sabedoria é um vil ataque à sua dignidade. É tudo uma questão de liberdade e livre mercado, mas essa liberdade não inclui o direito das empresas de proteger seus próprios funcionários e clientes.

Então, vemos que nada disso faz sentido, a não ser se percebermos que a obstrução dos republicanos à vacina não é fruto de uma ideologia coerente e sim da busca pelo poder. Uma campanha de vacinação bemsucedida seria uma vitória para o governo Biden, e por isso teve de ser enfraquecida com o uso de qualquer retórica.

A estratégia antivacinação funcionou politicamente. A persistência da covid ajudou a manter o clima sombrio nos EUA, o que prejudica o partido que está na Casa Branca. Com isso, os republicanos que fizeram tudo ao seu alcance para impedir uma resposta eficaz à covid não hesitaram nem por um segundo em responsabilizar Biden pelo fracasso em acabar com a pandemia.

E o sucesso da destrutiva politização da vacina é, em si, profundamente horripilante. Parece que o cinismo completo compensa, mesmo se promovido ao custo das vidas de seus apoiadores.