Título: Seqüência de desencantos
Autor: Milton Temer
Fonte: Jornal do Brasil, 15/03/2005, Outras Opiniões, p. A13

Ao contrário da Argentina, onde o superavit é para ¿pagar aposentados¿, o PT o destina ao atendimento da manutenção dos lucros da agiotagem internacional

Não vou tratar do tema político da semana, porque me recuso a levá-lo a sério. Até por respeito ao vernáculo, o que vem aí não é reforma ministerial, mas explicitação de política de alianças de baixo nível. É apenas mais um episódio típico, da cadeia ininterrupta que justifica a dúvida: má-fé, pura incompetência, ou as duas hipóteses simultaneamente? Indo ao que conta, Paulo Nogueira Batista destrinchou aqui, de forma pedagógica, o caráter deletério da última decisão do Banco Central, liberando o câmbio e a exportação ilimitada de divisas. Na seqüência da soja transgênica, é mais uma legalização de ato criminoso depois da porta arrombada. Se não, vejamos; a evasão criminosa de divisas, através das brechas na legislação sobre as famigeradas CC-5, é tornada fato público. O que faz o autônomo BC? Ao invés de obstruir as brechas, legaliza a ilegalidade. Por norma interna e, portanto, ao arrepio da lei.

Tenho pleno acordo com o que aqui foi dito por Leonardo Boff a respeito da extrema-unção ao irrecuperável PT. Mas é duro imaginar que todo o patrimônio de reflexão sobre um Brasil que rompesse com amarras do subdesenvolvimento e da desigualdade social fosse tão rapidamente transformado em lixo da história. Principalmente quando vemos exemplos vizinhos de uma nova onda antiimperialista e libertária na América Latina. Está aí o presidente Kirchner que, depois de colocar o FMI numa roda de tango, após vitória na negociação de dívidas públicas, propõe boicotes contra multinacionais que se consideram intocáveis nos privilégios.

Por que não temos exemplo parecido no Brasil? Covardia, ou guinada doutrinária consequente? A resposta vem de Frei Betto, em entrevista a www.cultiva.org.br, onde explica que saiu do governo por não mais se sentir em condições de defende-lo. E onde detalha: ''(...) Lula é responsável por todas as decisões do governo. Não me parece que esteja mal assessorado. Creio que fez uma opção ante esta contradição que vive o país. Entre uma política social dinâmica e uma política econômica conservadora. Lula está muito consciente.''

A esbórnia dos lucros incessantes do capital especulativo, no contraponto da desesperança e da apatia que envolvem os setores do trabalho, é, portanto, produto da adesão petista consciente aos paradigmas econômicos que sempre contestou, quando na oposição.

O comportamento diante da dívida pública e da seguridade social, dois exemplos referenciais, é ilustrativo. Este governo não hesita em se submeter à grande falácia neoliberal - dívida é para ser paga sem discussão, e seguridade social tem que ser privatizada, pois o setor público não resiste aos ''déficits impagáveis''.

Falácia, como revela o economista Paulo Passarinho, apresentador do Faixa Livre, em artigo a ser brevemente divulgado no jornal da sua categoria: ''No próprio mês de janeiro, o leitor atento dos jornais tomou conhecimento que a arrecadação federal em 2004 havia batido um recorde. Além disso, soube que o tributo que mais influenciou esse recorde havia sido a Cofins, com uma receita de R$ 79,203 bilhões, 20,6% superior à de 2003. Mais, ainda: soube também que a receita da CSLL havia sido de R$ 20,264 bilhões. Pois, bem: apenas o somatório dessas duas receitas - criadas para o financiamento da seguridade social - atingiu o montante de R$ 99,467 bilhões''.

Ou seja; só com o produto da CSLL e Cofins (sem levar em conta os R$ 27,326 bilhões da CPMF, também prevista para a seguridade) somados aos R$ 96,039 bilhões, das contribuições de patrões e empregados, não há déficit para despesas com os benefícios na ordem de R$ 128,742 bilhões. Há até saldo, não fossem tais receitas desviadas para o ''o cumprimento das metas cavalares do hiper-arrocho fiscal, representado pelo superávit primário.''

Conclusão: ao contrário da Argentina, onde o ministro Lavagna afirma que superavit é para ''pagar aposentados'', o governo petista o destina exclusivamente ao atendimento da manutenção dos lucros da agiotagem internacional. Aí está nossa debilidade. Incompetência, má-fé ou os dois juntos?

PS: Em 15 de março de 85, José Sarney era empossado na Presidência da República, sob hostilidade do PT. Hoje é o principal sustentáculo do governo Lula no Senado. Quem mudou?