Título: O bode da reforma política
Autor: Eliseu Padilha
Fonte: Jornal do Brasil, 15/03/2005, Outras Opiniões, p. A13

Tramita na Câmara dos Deputados o substitutivo aos projetos de lei 5268/2001 e 2679/2003, que corporifica a chamada reforma política, e pretende alterar o Código Eleitoral, a Lei dos Partidos Políticos e a Lei das Eleições.

Aprovada como está, a proposta resultaria em inúmeras modificações na forma como hoje se faz política no Brasil, sendo que quatro temas se destacariam por ensejarem grandes transformações nas regras atuais: a proibição de coligações nas eleições proporcionais, a criação das ''federações'' partidárias, as listas pré-ordenadas de candidatos às eleições proporcionais e o financiamento público das campanhas.

A reforma é indispensável para reafirmar a República e a democracia do país, uma vez que busca o fortalecimento dos partidos, a fidelidade partidária e, principalmente, a democratização do processo eleitoral. Contudo, após dois anos no poder, em nenhum momento o governo Lula havia demonstrado interesse em priorizar o andamento do projeto. Agora, com a fragilidade da base de sustentação política, culminando com a derrota na eleição da Mesa da Câmara dos Deputados, surgem vozes palacianas a dizerem que a reforma será ''prioritária''.

Ocorre que o governo costuma esconder seus verdadeiros interesses em frases oportunísticas. Daí me negar a crer no discurso oficial e convidar o leitor a comparar o que se propõe na reforma e a prática petista. Entre o posicionamento histórico do PT e o pragmatismo governamental, há uma distância semelhante à existente entre o céu e o inferno.

Se não, vejamos. Ao construir uma maioria congressual gelatinosa, em especial na Câmara, o governo agiu para ''esquartejar'' os partidos que desde o início, ou depois de constatar que foram iludidos, optaram pela oposição. Deputados do PSDB, PFL e PDT, movidos por apelos heterodoxos do Planalto, ingressaram em legendas aliadas, especialmente no PL e no PTB. Os números são reveladores. Da eleição de 2002 para cá, o PFL saiu de 84 deputados para 61, o PSDB de 70 para 51 e o PDT de 21 para 14. Na mão inversa, o PTB foi de 26 deputados para 49 e o PL de 26 para 48.

O melhor exemplo do modo fisiológico petista de manipular partidos está no PMDB onde, desde o início, se procura destituir a direção em favor de nomes ''alinhados''. Foram várias tentativas de influir no destino do PMDB. Do desprezo à autoridade de sua direção e aos resultados de convenções, passando por filiações ''virtuais'' visando maiorias eventuais, até o último e grave atentado à institucionalidade partidária: o anunciado ingresso da senadora Roseana Sarney e do ministro Ciro Gomes. São nomes respeitáveis, sem dúvida, mas pretender filiá-los em desrespeito ao comando da sigla e, ainda, sob o manto do ''prestigiamento'' da sigla, é abusar do sistema partidário e da cidadania nacional. Isso estimula a traição e a desobediência às determinações do órgão máximo partidário, a Convenção Nacional, e avilta sua autonomia, apunhalando o coração da reforma: partidos fortes, fidelidade e processo eleitoral democrático. Um governo que busca controlar o Congresso dessa maneira, submetendo-o às suas diretrizes, quer valorizar partidos e impedir a cooptação desagregadora das legendas?

Obvio que não. É nítida a incompatibilidade entre a prática do PT e sua proposta de reforma. Vê-se, pois, que não se quer reforma alguma.

Por que então prioridade para reforma? Simples: é necessário ''colocar o bode na sala''. É preciso ''ameaçar'' partidos e parlamentares com temas contrários aos seus interesses, como a cláusula de barreira e as federações partidárias; o financiamento público das campanhas e a lista pré-ordenada de candidatos às eleições proporcionais. Espera o governo, portanto, que os discordantes lhe peçam para ''tirar o bode da sala'', ou seja, desistir da reforma, em troca de apoio já, e em 2006, na reeleição presidencial. Pra completar, aprovar-se-ia o fim da verticalização, o abrandamento da cláusula de barreira e outros temas que facilitam a cooptação generalizada.

Assim, a reforma política ficará para as calendas e a história mostrará que foi só um ''bode'' sacrificado em nome do interesse maior desse governo: o projeto de poder. Mesmo que ainda esteja em débito quanto a um projeto de administração para o país. Quem viver verá.