O Globo, n. 32048, 05/05/2021. O País, p.4

 

 

 

Mandetta dá à CPI indícios de que Bolsonaro ignorou recomendações técnicas na pandemia

 

NATÁLIA PORTINARI, JULIA LINDNER E ANDRÉ DE SOUZA

opais@oglobo.com.br

 

Com citação de reuniões internas do governo e apresentação de documentos, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta afirmou em um depoimento de oito horas na CPI da Covid que o presidente Jair Bolsonaro não seguiu recomendações técnicas para o combate à pandemia e teve uma postura de enfrentamento à ciência.

Mandetta revelou uma carta entregue a Bolsonaro em março de 2020 prevendo “colapso do sistema de saúde” se medidas como o isolamento social não fossem adotadas, contou ter visto uma minuta de documento no Palácio do Planalto para incluir na bula da cloroquina indicação para Covid-19, e afirmou que o presidente parecia ouvir “outras fontes” sobre a doença, destacando a presença constante do vereador Carlos Bolsonaro em reuniões ministeriais.

“Nesse dia, havia na mesa um papel não timbrado de um decreto presidencial para que fosse sugerido daquela reunião que se mudasse a bula da cloroquina na Anvisa, colocando a indicação para coronavírus. Foi inclusive o próprio presidente da Anvisa, Barras Torres, que estava lá, que disse não”

Alerta de colapso

Mandetta deu à CPI cópia de uma carta entregue por ele em 28 de março do ano passado a Bolsonaro, quando as divergências entre os dois já eram crescentes. O ex-ministro defendia a adoção das recomendações de autoridades de saúde nacionais e internacionais, como o isolamento social.

“Recomendamos, expressamente, que a Presidência da República reveja o posicionamento adotado, acompanhando as recomendações do Ministério, uma vez que a adoção de medidas em sentido contrário poderá gerar colapso do sistema de saúde e gravíssimas consequências à saúde da população”, diz trecho da carta.

Bula da cloroquina

Ele contou que em de abril de 2020 foi chamado para uma reunião no Palácio do Planalto com ministros e médicos que defendiam a cloroquina. Ao chegar, deparou-seco ma minuta de um decreto presidencial para incluir na bula da cloroquina a indicação no tratamento da Covid-19. A proposta teria sido rechaçada pelo diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres.

— Nesse dia, havia na mesa um papel não timbrado de um decreto presidencial para que fosse sugerido daquela reunião ques e mudasse abulada cloroquina na Anvisa, colocando na bula a indicação de cloroquina para coronavírus. Foi inclusive o próprio presidente da Anvisa, Barras Torres, que estava lá, que disse não. O ministro Jorge Ramos (na verdade, Jorge Oliveira, atualmente no TCU) disse: “Isso nãoédalav rada qui ”. Mas é uma sugestão de alguém. Alguém pensou, se deu ao trabalho de colocar aquilo em formato de decreto.

Consultas a ‘outras fontes’

Mandetta contou ter feito projeções a Bolsonaro no início da pandemia de que a doença poderia matar 180 mil pessoas no Brasil em 2020 (o número de óbitos foi 194.976). Disse que o presidente citava haver previsões diferentes equeBol sonar o parecia ter fontes de informação paralela. E citou a presença frequente de Carlos Bolsonaro.

—Me lembro do presidentes em prequestionara questão da cloroquina como válvula de tratamento precoce, embora sem evidência precoce, lembro de ele falar do isolamento vertical. Ele tinha outra, não saberia dizer, outra fonte que dava para ele. Do Ministério da Saúde nunca houve orientação de coisas que não eram da cartilha.

Diálogo com a China

Mandetta relatou dificuldades com o Itamaraty, na gestão de Ernesto Araújo, e com os filhos de Bolsonaro para conseguir um bom diálogo com a China — principal produtora de equipamentos e insumos médicos.

— Eu tinha dificuldade com o ministro de Relações Exteriores. O outro filho do presidente que é deputado, Eduardo, tinha rotas de colisão com a China, através de Twitter, mal-estar. Eu fui até um certo dia ao Planalto, eles estavam todos lá, os três filhos do presidente, e mais assessores, que são assessores de comunicação. Disse a eles: eu preciso conversar com o embaixador da China, preciso que eles nos ajudem, pedi uma reunião com ele, posso trazer aqui? “Não, aqui não.” Acabei fazendo por telefone —afirmou.

Testagem em massa

O ex-ministro foi questionado por que o Brasil não fez testagem em massa desde o início. Ele afirma ter elaborado um plano nessa direção, destacando ter sido confirmada a compra por seu sucessor, Nelson Teich — que será ouvido hoje pela CPI. A estratégia, porém, não foi implementada e testes chegaram a ter o prazo de validade perto de expirar.

— No mês de março iniciamos todo o processo de aquisição da testagem, 24 milhões de testes. Não adianta só ter o teste, é preciso processar os testes. Mas foi assinado o recebimento dos testes no ministro subsequente, ministro Teich. E depois eu soube que essa estratégia não foi utilizada. Foi muito clara a nossa estratégia: testar, testar.

Atendimento a doentes

Senadores questionaram o ministro sobre a orientação inicial de que as pessoas só procurassem unidades de saúde com sintomas graves. Mandetta afirmou que o intuito era evitar aglomerações por suspeitas de viroses em hospitais, antes de haver transmissão comunitária no país.