Título: Avanços e recuos
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 16/03/2005, Opinião, p. A10

Uma feliz coincidência sugeriu um marco curioso para as comemorações de ontem: a posse do novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Carlos Velloso, somou-se às lembranças das duas décadas de democracia plena no Brasil - iniciada em 15 de março de 1985 com a posse do primeiro governo civil depois de 21 anos de regime autoritário. A conjugação dos dois fatos faz sentido. Afinal, a Justiça Eleitoral tornou-se o símbolo mais notável da transformação do país em uma das maiores democracias do mundo. Em 1989, quando os brasileiros escolheram o primeiro presidente da República por votação direta depois da ditadura militar, havia, então, 82 milhões de pessoas aptos a votar. No ano passado, o número elevara-se para cerca de 120 milhões. Uma evolução que acompanhou os saltos modernizantes da nação. Apesar do percurso repleto de sobressaltos, dos testes pedregosos que se precisou enfrentar, da maturidade institucional alcançada por embates sucessivos, o Brasil pode orgulhar-se de ter constituído um dos sistemas eleitorais mais avançados do mundo - incluindo, em tal contabilidade, mesmo as maiores democracias ocidentais. Essa evolução começou a consolidar-se quando o país iniciou o processo de informatização do alistamento eleitoral. A tecnologia, simbolizada pela urna eletrônica, possibilitou a modernização da votação e da apuração. Com ela, praticamente desapareceram os históricos atrasos que transtornavam os eleitores e, sobretudo, minaram substancialmente as tentativas de fraudes. Não é pouca coisa. Os avanços eleitorais costumam configurar entre os indicadores mais utilizados para aferir a qualidade de uma democracia. Resume o grau de participação da população na definição dos próprios rumos. Revela ainda a capacidade de alternância estável de poder e de vocalização de múltiplas e divergentes expressões políticas.

A estável transição democrática comandada pelo mineiro Tancredo Neves e, depois, pelo maranhense José Sarney fez o Brasil seguir um rumo sem volta. Qualquer retrocesso, hoje, constitui uma aventura pouco crível. A sociedade brasileira está suficientemente crítica e participativa para evitar novas tentações autoritárias - de feições militares ou civis. Em 1945, Octávio Mangabeira definiu a democracia brasileira como uma ''plantinha tenra que precisa ser regada todo dia''. A preocupante imagem do velho cacique udenista ainda parece em vigor. A Justiça Eleitoral, sublinhe-se, regou a planta direitinho. O Brasil, contudo, ainda tem padecido de um arcabouço político antiquado. Por um lado, duas décadas ininterruptas de democracia não foram suficientes para patrocinar iguais avanços na prática dos partidos e seus políticos.

Nesse terreno verificam-se retrocessos constrangedores. Práticas fisiológicas, relações promíscuas entre Poderes, governos com base de apoio parlamentar construída artificialmente, abusos eleitoreiros, partidos programaticamente desfigurados e a crescente degradação intelectual, moral e cívica dos políticos são algumas das fragilidades que ajudaram a sedimentar o descrédito da população ante seus representantes. Por outro lado, o país desenhado pela Constituição de 1988 revelou-se dotado de problemas perturbadores, resumidos numa só expressão: o gigantismo do Estado. Trata-se de um conjunto de fardos institucionais que tem atravancado o desenvolvimento socioeconômico. Um Estado caro, pesado, pouco transparente e nada eficiente arrefece qualquer projeto mais efetivo de inclusão social - a democracia que nos falta. Eis a imagem do país: uma terra em que opulência e escassez convivem lado a lado. Na política não é diferente: o moderno e o arcaico se combinam e sugerem lições relevantes do passado para o presente e o futuro.