Título: Federação brasileira: verdadeira ficção
Autor: Francesco Conte
Fonte: Jornal do Brasil, 16/03/2005, Outras Opiniões, p. A11

O princípio do Estado de Direito constitui o que a moderna doutrina do direito constitucional vem designando de princípio estruturante e, portanto, um dos princípios componentes do núcleo essencial da Constituição. Representa diretriz fundamental a condicionar a interpretação das demais regras do ordenamento jurídico. Na sua concretização, desdobra-se nos subprincípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

Os Estados-membros da ''Federação'' brasileira são hoje vítimas da insegurança jurídica proporcionada pela opção feita pela União Federal em descumprir o sistema tributário instituído pela Constituição Federal de 1988, comprometendo, assim, a efetividade do pacto federativo. A despeito da autonomia das unidades federativas, constitucionalmente assegurada, o governo central promove a asfixia financeira dos estados, o que inviabiliza o ideário de um cenário político de estabilidade, previsibilidade e uniformidade e, com isto, a concretização do equilíbrio federativo.

Toda federação tem, por definição, o dever (auto-imposto) de assegurar a existência de seus membros, isto é, a conservação, em caráter permanente, da independência política dos entes autônomos que a compõem. Sem esta independência e, como decorrência, sem a possibilidade do desenvolvimento pleno das suas funções institucionais pelos entes federativos, não há que se falar em federação. Assiste-se à deformação da Federação brasileira, camuflada sob o título da - fictícia - federação de cooperação, quando, na realidade, o que se realiza é a hegemonia do poder central, cada vez mais fortalecido, em detrimento dos demais entes federados.

Sob o pretexto da adequação do sistema tributário nacional aos padrões necessários ao processo de integração internacional do Brasil, a União vem dilacerando a competitividade do produto nacional, com a criação e majoração das contribuições - de incidência cumulativa. Isto se faz como se o processo de abertura à economia globalizada pudesse desvincular-se da saúde financeira das partes que compõem o Estado Federativo brasileiro. As mudanças vêm sendo feitas de forma assimétrica, inapta a verdadeiramente promover a inserção do Brasil no mercado globalizado.

A Lei Kandir (Lei Complementar nº 87/96), aprovada pela União, vem promovendo, desde a sua edição, efeito devastador nas finanças dos estados, através da desoneração total das exportações da incidência do ICMS.

Para compensar os Estados-membros pela referida perda, a Lei Kandir criou expressamente instrumento de compensação (art. 31), que a União vem deliberadamente descumprindo, o que, inclusive, foi objeto da propositura da Ação Cível Originária nº 764 pelo Estado do Rio de Janeiro, em curso perante o STF.

Estima-se que a ''conta'' da Lei Kandir chegue a R$ 100 bilhões. Deste valor, a União repassou apenas R$ 31,7 bilhões aos estados, que, desta forma, vêm amargando o custo dos outros R$ 68,3 bilhões. Em nome do interesse nacional propalado pela União Federal - que é o ente responsável pela concretização dos interesses nacionais da federação - são os Estados-membros que, praticamente sozinhos, vêm arcando com todo o peso da desoneração das exportações.

No mesmo passo em que a União implementou estes instrumentos de redução da receita dos Estados-membros, criou a CPMF e, a cada ano, vem promovendo o incremento de sua arrecadação tributária pela via das contribuições em geral.

As contribuições - ao contrário dos impostos, como o IR e o IPI -, não têm sua arrecadação compartilhada com os Estados. A arrecadação é destinada exclusivamente aos cofres federais.

A título ilustrativo, impõe assinalar que, se no ano de 1995 a arrecadação de Cofins (contribuição para a seguridade social) foi pouco inferior a R$ 15.3 bilhões, em 2004 a arrecadação saltou para cerca de R$ 76.6 bilhões. No mesmo período, a arrecadação da contribuição para o PIS/Pasep saltou de cerca de R$ 6.1 bilhões para 19.3 bilhões; a CSLL (contribuição social sobre o lucro líquido) passou de R$ 5.8 bilhões para R$ 19.5 bilhões. Além disto, foram criadas as contribuições sobre movimentação financeira (CPMF) e sobre os combustíveis (Cide), com as quais a União Federal arrecadou, sozinha, no ano de 2004, R$ 26.4 bilhões e R$ 7.6 bilhões, respectivamente (valores extraídos do site da Receita Federal).

A União Federal, com mecanismos ardilosos, vem restringindo a participação dos Estados-membros na arrecadação tributária, neutralizando, assim, a capacidade de desenvolvimento das suas atribuições constitucionalmente conferidas. O princípio federativo, que pressupõe a auto-administração dos Estados-membros, está ameaçado, nada obstante ser garantido por cláusula pétrea na Constituição Federal. A Federação brasileira precisa sair do papel, deixar de ser verdadeira ficção e virar realidade.