O Globo, n. 32054, 11/05/2021. Sociedade, p.10

 

 

Pesquisa estima que mortes de bebês sejam o triplo do oficial

Crianças não têm alta vulnerabilidade para a doença como idosos, mas não têm 'risco zero'; desigualdade e problemas de assistência contribuem para o índice
 
Raphaela Ramos
 
 
Apesar de não serem considerados grupo de risco para a Covid-19, ao menos 1.618 bebês com até 1 ano morreram pela doença no Brasil desde o início da pandemia, quase o triplo do número oficial do Ministério da Saúde, de 550 óbitos. Se computadas crianças até os 14 anos, as vítimas sobem para 3.198. Os números são de um levantamento realizado pela organização de saúde pública Vital Strategies, sob análise da epidemiologista Fátima Marinho, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

O estudo leva em conta o excesso de mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) não especificada, comparadas com as de 2019. As informações foram extraídas do Sivep-Gripe, do próprio Ministério da Saúde, e são muito maiores que as da mesma faixa etária nos Estados Unidos.

Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), foram 137 mortes de menores de 4 anos pela Covid-19 nos EUA até este domingo. Já a Academia Americana de Pediatria registrou 306 óbitos, mas considerando critérios de idade que podem variar nos estados: menores de 14 ou de 20 anos, até 6 de maio.

Os EUA são mais populosos que o Brasil, com projeção de 333 milhões de habitantes neste ano, contra 212 milhões brasileiros. E os americanos registraram mais de 582 mil mortes acumuladas pela Covid-19, contra 422 mil no Brasil.

— Se comparado com os EUA, que têm mais crianças proporcionalmente na população, diferentemente da Europa, os números lá são absurdamente menores — enfatiza Marinho.

Também se destaca a comparação com números oficiais de países latino-americanos. O México teve 600 perdas de crianças para a Covid-19 até o dia 27 de abril. Até esta segunda, o país registrou 218.985 mortes pela doença. Na Argentina, que teve 67.325 mortes até esta segunda, foram registrados 185 óbitos de menores de 20 anos pela Covid-19, sendo 44 menores de 1 ano, segundo dados do Ministério da Saúde. E na Colômbia, até 15 de abril, foram 88 mortes de crianças de até 10 anos pela doença, e 77.854 óbitos totais pela Covid-19 contabilizados até agora.

Marcelo Otsuka, coordenador do Comitê de Infectologia Pediátrica da Sociedade Brasileira de Infectologia, pondera que também pode haver subnotificação nesses números.

Subnotificação maior

A epidemiologista da UFMG se debruçou sobre casos de SRAG não especificados, que não tiveram testes ou com resultado inconclusivo:

— Com pouca testagem no Brasil, economiza-se para testar adultos e idosos. São feitos poucos diagnósticos em crianças e, quando aplicamos essa correção, os números aumentam muito.

Otsuka diz ainda que o total de óbitos de bebês pelo coronavírus pode ser ainda maior do que o revelado no levantamento da Vital Strategies, uma vez que houve redução de outras doenças respiratórias que podem causar SRAG:

— As crianças não foram à escola, fizeram isolamento social, várias usavam máscara. Muitas doenças que entram como SRAG são desencadeadas por algum tipo de vírus, que circularam menos, e a redução foi drástica — afirma.

Já o pediatra Ricardo Chaves, do Núcleo Perinatal da Uerj, pondera que, no caso dos neonatos — com até 28 dias —, uma parte do excesso de mortes por SRAG na pandemia pode ter relação com outras doenças respiratórias, ligadas à prematuridade.

— Como a doença é potencialmente grave nas grávidas, supomos que a prematuridade tenha aumentado: se a mulher fica grave, interrompe-se a gravidez ou ela entra em trabalho de parto. E a principal patologia do prematuro é a membrana hialina, uma doença respiratória — explica Chaves.

Mas Marinho cita estudo sobre gestantes e Covid-19, realizado com mais de 2 mil mulheres de 18 países, com e sem a doença, publicado em abril na revista científica americana Jama:

— Ele mostrou que cerca de 12% dos bebês de mães com Covid-19 nasceram com PCR positivo. E o maior percentual ocorreu em países em desenvolvimento, aumentando a mortalidade nesses locais, o que não foi observado nos desenvolvidos. Na nossa base de dados observa-se mais ou menos a mesma taxa de bebês neonatos que morreram em relação ao número de gestantes internadas com Covid-19.

Desigualdades

Renato Kfouri, presidente do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, pondera que crianças morrem muito mais em países em desenvolvimento — por qualquer causa — do que nos desenvolvidos:

— As diarreias, bronquiolites e pneumonias matam mais aqui do que lá, não seria diferente com a Covid-19.

Segundo dados do IBGE divulgados em novembro, a mortalidade infantil — que considera menores de 1 ano de idade — era de 11,9 por mil no Brasil em 2019. O índice é alto quando comparado ao de países desenvolvidos. Nos EUA, a taxa era de 5,6 em 2019, segundo o Unicef.

Marinho concorda que as mortes provocadas pelo coronavírus em bebês no Brasil têm relação com a extrema desigualdade social e pobreza presentes no país. Ela destaca que a maioria das mortes por Covid-19 ocorre em crianças sem registro de outras comorbidades.

— Isso nos leva a pensar na carga viral: o vírus pode estar circulando muito perto desses bebês, provavelmente porque os pais precisam sair para trabalhar, e/ou por viverem em casas pequenas com muita gente. A maior parte das mortes (registradas no levantamento) são de bebês, que ficam em casa o tempo todo — diz.

Para Otsuka, a sobrecarga do sistema de saúde, que fez muitos hospitais redirecionarem esforços da pediatria para pacientes adultos, também pode estar relacionada aos números mais altos no Brasil.

Como proteger os bebês

Otsuka também destaca que muitos pais, com receio do contágio, adiam a procura pelo serviço médico, o que pode fazer com que as crianças cheguem aos hospitais com quadros mais graves.

A falta de diagnósticos é outro ponto enfatizado pelos especialistas, que pedem atenção aos médicos.

— É preciso começar a considerar a Covid entre os diagnósticos ao ver uma criança doente. Especialmente quando é uma família muito pobre, na qual os pais têm risco de exposição maior. E precisamos passar a testar mais. A criança não tem risco alto como o do idoso, mas não tem risco zero — afirma Marinho.

Chaves explica que, na infância, em geral, a Covid-19 é também uma doença com sintomas respiratórios. A criança pode ter coriza, desconforto respiratório, febre. Mas o pediatra também chama atenção para sintomas gastrointestinais:

— Diarreia e vômito têm sido proporcionalmente mais comuns nas crianças do que nos adultos — afirma.

Otsuka também destaca que a melhor forma de proteger os bebês da Covid-19 é se os adultos da casa não ficarem doentes. Chaves lembra que a amamentação não deve ser interrompida: mesmo que a mãe esteja com a doença, ela ainda pode amamentar o bebê, tomando os devidos cuidados, afirma o pediatra.

— A proteção dos bebês quando a mãe tem Covid é respiratória. A mãe deve usar máscara, manter higiene manual e, as que puderem, ter alguém para dividir os cuidados. Mas o aleitamento é indicado, já se sabe que há presença dos anticorpos no leite materno, reforçando a decisão que a amamentação deve seguir — explica.