Título: Parabéns, Elis sessentona
Autor: João Bernardo Caldeira
Fonte: Jornal do Brasil, 17/03/2005, Caderno B, p. 1

A cantora que ajudou a reescrever a música brasileira e é considerada a maior do Brasil faria hoje 60 anos

Há exatos 60 anos, em 17 de março de 1945, nascia aquela que muitos consideram a maior cantora do Brasil. Elis Regina não se destacou somente pela bela voz, impecável e afinada, nem apenas pela personalidade ímpar, sincera. À frente de Hélio Delmiro (guitarra), César Camargo Mariano (piano e arranjo), Luisão Maia (baixo) e Paulinho Braga (bateria), ela foi co-autora de uma sonoridade singular, que tanto influenciaria novas gerações. Além disso, lançou vários compositores, entre eles Milton Nascimento, Edu Lobo e João Bosco. Intérprete de talento, deixou Porto Alegre em 1959 para gravar seu primeiro compacto no Rio. A partir daí conheceu o estrelato, interrompido em 1982 por uma overdose. Sua música, no entanto, ainda ecoa na história da cultura brasileira. No disco Elis, de 1966, ela gravou Canção do sal, a primeira que pescaria da lavra de Milton. Outras viriam, como Ponta de areia (de Milton e Fernando Brant), mas, muito mais do que parceria musical, havia uma química entre os dois, amizade profunda.

¿ Elis foi a maior intérprete que já conheci. Lançou quase todos os cantores que vieram depois dela, inclusive eu. Tem coisas que levam milhões de anos para acontecer, mulher igual àquela não existirá nunca mais. Foi minha musa inspiradora número um, sempre componho pensando nela. De vez em quando ainda me pego fazendo uma música e me perguntando como ela estaria cantando hoje aquela canção. Penso mesmo ¿ diz o cantor, de 62 anos, o Bituca, para amigos como Elis.

Há 40 anos, a cantora se tornou conhecida em todo o país ao vencer o I Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, defendendo Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. No mesmo ano, fez o lendário show lançado em disco Dois na bossa, que teria volumes 2 e 3, ao lado do cantor Jair Rodrigues. Ainda em 1965 estrearia na TV Record um dos mais célebres programas da música brasileira, O fino da bossa, por onde passariam diversos talentos.

Jair, de 66 anos, conta que conheceu a cantora em 1964, de passagem pelo Rio. Foi no Beco das Garrafas, em Copacabana, reduto da bossa nova, que ele a viu cantar. Depois se encontraram em São Paulo e resolveram fazer o show que resultaria no lendário disco Dois na bossa:

¿ Esse disco correu mundo, viajamos pelo Brasil e exterior. Era maravilhoso estar no palco com Elis, porque ela era alucinada por mim e eu por ela. Fora do palco, nossa amizade era fora do comum. Era uma mulher que não sabia mentir para ninguém. Só gente dessa estirpe se torna grandiosa. Elis está aí viva na memória de todo mundo, na minha e na de todo brasileiro.

Ao longo da carreira, ela também quebrou paradigmas ao gravar gente como Renato Teixeira, representante da música do campo. O que Elis fazia ditava tendências, e assim ela colocou o universo caipira de Romaria (a do verso ¿sou caipira pira pora nossa...¿) nas rádios de todo o Brasil.

¿ Elis foi um anjo que passou em minha vida. Sem ela, não sei como teria sido. A música pode ser medida por antes e depois dela. Ela pegou toda a história de intérpretes brasileiras, como Dalva de Oliveira e Angela Maria, e a tornou contemporânea, moderna e internacional ¿ diz o cantor, de 59 anos, que teria ainda a canção Sentimental eu fico gravada pela diva.

Dezenas de músicas se destacam em seu repertório, como O bêbado e a equilibrista (Aldir Blanc e João Bosco), Madalena (Ivan Lins) e o hino Como nossos pais (Belchior). Um de seus discos mais lembrados é Elis e Tom, de 1974, relançado pela Trama, dirigida por João Marcello Bôscoli, 34 anos, filho de Elis com o compositor Ronaldo Bôscoli. Seus irmãos são os cantores Pedro Mariano e Maria Rita, frutos do casamento com o pianista César Camargo Mariano. João Marcello lembra que Elis não tinha pudor de encarar situações vistas com preconceito na época, como uma separação:

¿ Eu era o único na escola filho de pais separados.

No dia-a-dia, ela o levava ao colégio e não descuidava do lar, mesmo entre um show e outro. Enquanto isso, fazia história:

¿ O quarteto de Elis ¿ com Paulinho Braga, Luisão Maia, Hélio Delmiro e César Camargo ¿ é o maior da segunda metade do século 20. Criaram uma nova levada, fundindo o lado negro da bossa nova com o samba. Elis tinha timbre de voz, afinação e inteligência acima da média e uma emoção à flor da pele. E tinha um dos melhores repertórios do século ¿ diz João.

Com um disco lançado, Maria Rita tem sido apontada como a grande mantenedora do legado de Elis. As semelhanças são evidentes, mas as diferenças também, dizem os amigos da Pimentinha. Maria Rita, de 27 anos, não tem medo de comparações.

¿ Elis era imprevisível, atemporal: quando menos se esperava que dela viesse um som mais pesado, lá vinham as guitarras. Era pioneira e muito, mas muito corajosa. A influência dela está em todas as cantoras, nos músicos e arranjadores, no exemplo do boníssimo repertório, na revolução do show como espetáculo audiovisual. Ela era um instrumento a mais no palco, e também uma grande atriz. Taí: acho que o grande diferencial dela era a espontaneidade e a naturalidade. O que quer que ela estivesse cantando hoje, tenho certeza de que sua carreira estaria exatamente onde ela quisesse.