Título: As peripécias do artífice na reforma sindical
Autor: Ricardo Antunes
Fonte: Jornal do Brasil, 17/03/2005, Outras Opiniões, p. A11

Triste é o país onde um artífice da metalurgia, sob pressão da ordem, encontra-se disposto a destruir o que um estancieiro criou, sob pressão operária, e finalizar o trabalho iniciado pelo príncipe

O governo Lula finalmente enviou ao Congresso a reforma sindical, o que nos obriga a voltar ao tema. Será curioso ver um metalúrgico dos palácios destruir o que de algum modo, ao menos parcialmente, as forças sociais do trabalho conseguiram conquistar, num país onde os direitos parecem não valer para todos. Se a desmontagem da legislação do trabalho foi iniciada no governo Collor, coube a FHC avançar na sua desconstrução. Se ele não pode desvertebrar a CLT num só golpe, foi desestruturando-a pela margem, passo a passo, deixando para seu sucessor, o golpe final. Era difícil para um príncipe sem plebe eliminar o que foi forjado pelo estancieiro dos pampas.

Sabemos que a obra maior da engenharia política getulista foi politizar a questão social, tirá-la do espaço exclusivo da criminalização e das delegacias policiais, ainda que a deportação, tortura, cárcere, estado de sítio e lei de segurança nacional fossem freqüentes. Mas, para implementar o projeto industrial nacionalista e estatal, que veio a se desenvolver ao longo das décadas seguintes, Vargas precisava contar com a aquiescência dos trabalhadores urbanos, num momento de fortes dissensões entre as frações dominantes agrárias. Foi, inclusive, pela prevalência destes segmentos que os trabalhadores do campo foram completamente excluídos da legislação social sob Vargas.

Contra o mito do pai dos pobres, é necessário enfatizar que desde a segunda metade do século XIX e especialmente das primeiras décadas do século XX, o movimento operário, em seus embates cotidianos, exigia a criação de uma legislação social que garantisse os direitos do trabalho. Ao metamorfosear as reivindicações em dádivas, Vargas encontrou na legislação trabalhista um elemento essencial para a viabilização de seu projeto, tanto na sua resultante sócio-política, quanto para implantar a industrialização que o país necessitava. E o fez como se fosse uma dádiva aos trabalhadores, ação resultante de um pretenso Estado benefactor.

A reforma desenhada no Fórum Nacional do Trabalho do governo Lula marca o fim desse ciclo: trata-se de projeto fortemente cupulista, que prioriza as centrais sindicais em detrimento da participação dos sindicatos. Uma decisão negociada pela Central pode ser imposta para o conjunto dos trabalhadores. Também não enfrenta outro problema vital na estrutura sindical: a definição acerca da unicidade (que estabelece por lei a existência de um único sindicato) ou pluralidade dos sindicatos. Neste ponto o projeto se assemelha a um monstrengo, pois tanto permite uma pluralidade restringida, quanto mantém uma unicidade limitada. Isso porque, se determinado sindicato não atingir a representatividade exigida, poderá possibilitar a criação de outros sindicatos na mesma base. Teremos, então, um espaço (restrito) para o pluralismo na base, uma vez que na cúpula o pluralismo já existe.

De outra parte, como o projeto estabelece a representação sindical igual ou superior a 20%, isso preserva certa unicidade, ainda que limitada. Sem coragem para permitir a plena liberdade sindical, o projeto oscila entre o controle relativo e a liberdade desfigurada. Muito distante das bandeiras defendidas nos anos 80. (Ver nosso artigo em Margem Esquerda n.5, Boitempo, no prelo, onde a reforma sindical é discutida).

O governo Lula, se fosse herdeiro de sua ação pretérita, poderia dar um passo real na conquista da liberdade e autonomia dos sindicatos. Mas, sendo prisioneiro de uma lógica inteiramente outra, sofrendo a fagocitose, fez de seu projeto uma soma precária dos multiformes interesses do mercado, acrescido do heterogêneo mundo da burocracia sindical, resultando num monstrengo.

No que concerne à sustentação dos sindicatos, a proposta é de eliminação gradativa do imposto sindical e da contribuição assistencial, adotando a Contribuição de Negociação Coletiva, o que fere o desejo fundamental do sindicalismo autônomo pela cotização livre, voluntária e independente. Troca-se, como disse no artigo anterior (JB, 9/12/2004), gato por lebre e, desse modo, preserva-se a velha (e também a nova) burocracia sindical que se apossou do sindicalismo brasileiro.

Por fim, o projeto é também impreciso num quesito fundamental, podendo contemplar o nefasto preceito do negociado sobre o legislado. Há no mínimo muita dúvida acerca da garantia efetiva dos direitos existentes, quando forem objeto de negociação direta entre as partes. Se o negociado tiver prevalência sobre o legislado, está aberta a vala por onde os direitos sociais vão escorrer. Já parece suficiente para mostrar suas incongruências.

Se cabe ao governo Lula fazer mais esta peripécia, é forçoso repetir: triste é o país onde um artífice da metalurgia, sob pressão da ordem, encontra-se disposto a destruir o que um estancieiro criou, sob pressão operária, e desse modo, finalizar o trabalho iniciado pelo príncipe.