O Estado de São Paulo, n. 46522, 02/03/2021. Metrópole, p. A17

Governadores dizem que Bolsonaro quer priorizar ‘confronto’
Marcelo de Moraes
02/03/2021



Presidente diz que enviou dinheiro de sobra contra covid; já chefes estaduais falam em uso de verba pública para distorcer informações

Presidente. Narrativa de que R$ 837,4 bilhões haviam sido enviados pela União a Estados

Governadores de 18 Estados decidiram reagir ao movimento do presidente Jair Bolsonaro de tentar repassar a eles responsabilidade pela expansão da pandemia. O grupo divulgou nota criticando a atitude de usar dinheiro público "a fim de produzir informação distorcida, gerar interpretações equivocadas e atacar governos locais".

Foi uma resposta à estratégia do presidente, que passou a divulgar em público e nas suas redes sociais que a União repassava bilhões aos Estados para que reduzissem os efeitos da pandemia. Esse argumento também foi reproduzido nas redes da Secretaria Especial de Comunicação (Secom) do governo. A irritação foi grande porque a maior parte desses recursos aos quais Bolsonaro se refere é de repasses obrigatórios, previstos pela Constituição. Ou seja, não se trata de um gesto do presidente para conter a pandemia.

Para o grupo, não há dúvidas de que Bolsonaro decidiu tentar repassar para o colo dos governadores pelo menos parte da conta política e do desgaste pelo aumento dos casos.

Na nota, os governadores dizem que o governo parece "priorizar a criação de confrontos". O texto é subscrito pelos governadores de Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe. "Os governadores manifestam preocupação em face da utilização, pelo governo federal, de instrumentos de comunicação oficial, custeados por dinheiro público, a fim de produzir informação distorcida, gerar interpretações equivocadas e atacar governos locais", diz o texto.

"A Constituição, Carta maior de nossa sociedade e nossa democracia, estabelece receitas e obrigações para todos os Entes Federados, tal como é feito em qualquer federação organizada do mundo. No modelo federativo brasileiro, boa parte dos impostos federais (como o Imposto de Renda pago por cidadãos e empresas) pertence aos Estados e municípios, da mesma forma que boa parte dos impostos estaduais (como o ICMS e o IPVA) pertence aos municípios. Em nenhum desses casos a distribuição tributária se deve a um favor dos ocupantes dos cargos de chefe do respectivo Poder Executivo, e sim a expresso mandamento constitucional", acrescenta a nota. "Nesse sentido, a postagem hoje veiculada nas redes sociais da União e do presidente da República contabiliza majoritariamente os valores pertencentes por obrigação constitucional aos Estados e Municípios, como os relativos ao FPE, FPM, Fundeb, SUS, royalties, tratando-os como uma concessão política do atual governo federal. Situação absurda similar seria se cada governador publicasse valores de ICMS e IPVA pertencentes a cada cidade, tratando-os como uma aplicação de recursos nos municípios a critério de decisão individual."

Atrito. Durante o fim de semana, as redes bolsonaristas trataram de espalhar a narrativa do governo, afirmando que R$ 837,4 bilhões haviam sido enviados pela União aos Estados. Ou seja, os governadores teriam dinheiro sobrando para combater o vírus. Isso causou grande desconforto até em governadores aliados do Planalto, como Ronaldo Caiado (Goiás), Ratinho Júnior (Paraná) e Claudio Castro (Rio), que subscreveram a nota crítica.

Alguns governadores foram mais duros. "Ao invés de construir alianças para combater a pandemia, Bolsonaro destrói pontes e prejudica o trabalho dos governadores para salvar vidas", disse João Doria (PSDB), de São Paulo, ao Estadão.

"O presidente da República insiste em agredir a verdade para tentar atingir os governadores. Ele está postando contas malucas. Em suma, é um irresponsável", acusou o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCDOB). "O presidente da República mistura, sem explicar, todos os repasses federais e fala que mandou R$ 40 bilhões para o Rio Grande do Sul. Se a lógica é essa, fica a dúvida: como o Rio Grande mandou para Brasília R$ 70 bilhões em impostos federais, cadê os nossos outros R$ 30 bilhões?", indagou o gaúcho Eduardo Leite (PSDB).

Apesar da reação, os bolsonaristas não recuaram. O ministro das Comunicações, Fábio Faria, voltou a insistir na história e sustentou que os dados do governo procedem. "Os valores de repasses do governo para os Estados estão 100% corretos. As fontes são acessíveis", disse o ministro. "Os valores estão claramente discriminados nas publicações e são referentes a todos os repasses para os Estados: diretos (da União para os entes) e indiretos, como benefícios ao cidadão (auxílio, bolsa etc.) e suspensão de dívida. Não há o que contestar, não se briga com números", afirmou o ministro, endossando o discurso do presidente.

Imagem maniqueísta

"Em meio a uma pandemia de proporção talvez inédita, agravada por contundente crise econômica e social, o governo federal parece priorizar a criação de confrontos, a construção de imagens maniqueístas e o enfraquecimento da cooperação federativa essencial aos interesses da população."

CARTA DOS GOVERNADORES