O Estado de São Paulo, n. 46525, 05/03/2021. Metrópole, p. A11

Variantes avançam e País pode virar "celeiro"
Giovana Girardi
Fabiana Cambricoli
05/03/2021



Fiocruz vê prevalência de mutação em 6 de 8 Estados; descontrole preocupa cientistas

Análise feita pela Fiocruz em oito Estados das regiões Sul, Sudeste e Nordeste do País constatou a prevalência das variantes mais preocupantes do coronavírus Sars-CoV-2 em pelo menos seis. O dado indica ainda alta prevalência em todas as regiões avaliadas. Isso em um momento que a disseminação sem controle do novo coronavírus leva cientistas a temer que o País se torne uma espécie de "celeiro" de mutações, dificultando ainda mais o combate à covid-19.

De acordo com nota divulgada no início da noite de ontem pelo Observatório Covid-19 da Fiocruz, foram avaliadas mil amostras dos Estados de Alagoas, Ceará, Minas, Pernambuco, Paraná, Rio, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A nova ferramenta genética usada é capaz de detectar a mutação no vírus que é comum nas três variantes que mais vem preocupando o mundo atualmente – a P.1, identificada inicialmente no Amazonas, a B.1.1.7, originada no Reino Unido, e a B.1.351, na África do Sul.

Dos seis Estados, somente nas amostras de Minas e Alagoas a presença da mutação ocorreu em menos da metade das amostras – respectivamente 30,3% e 42,6%. Os Estados em que elas mais aparecem são Ceará (71,9%) e Paraná (70,4%). A situação nos demais é: PE (50,8%), RJ (62,7%), RS (62,5%), SC (63,7%). "A alta circulação de pessoas e o aumento da propagação do vírus Sars-Cov-2 tem levado ao surgimento de variantes de preocupação, que podem ser potencialmente mais transmissíveis em todo o mundo. Foi este o cenário que favoreceu o surgimento da variante brasileira P.1, no Amazonas, já classificada como uma 'variante de preocupação'", aponta a Fiocruz, que voltou a defender medidas mais rígidas, como lockdown.

Apesar de o teste ser capaz de detectar uma mutação comum a três variantes de preocupação, a Fiocruz afirma que há outros indícios de que "prevalência que está sendo observada nos estados esteja associada à P.1, uma vez que as outras duas variantes não têm sido detectadas de forma expressiva no território brasileiro".

Preocupação. Em geral, sabese que vírus, no decorrer de uma epidemia, podem apresentar de uma a duas mutações por mês. No caso da P.1 e das demais, foram cerca de 20 de uma vez. Por isso elas preocupam.

O motivo para isso ocorrer ainda não é bem compreendido pela ciência (mais informações nesta página). São como os acidentes de avião, compara a imunologista Ester Sabino, pesquisadora do Instituto de Medicina Tropical da USP. "É uma sucessão de eventos raros. Há milhares de aviões no ar e uma hora ocorrem vários erros e um cai. Mas quanto mais aviões estiverem no ar, maior a chance. Ter 20 mutações em um mês é inesperado. Alguma coisa aconteceu e a gente não entende bem", afirma.

A cientista pondera, no entanto, que a variante só se torna um problema quando, além de adquirir muitas mutações, ganha espaço para infectar muitas pessoas. "A P.1 é realmente mais transmissível. Se não tomar cuidado, a chance é maior de se contaminar com ela", diz.

Sabe-se que a P.1 é a principal linhagem em Araraquara (interior de São Paulo) e em Porto Alegre – cidades que viram seus sistemas de saúde lotarem –, e em Manaus, onde o colapso dos hospitais levou pacientes a morrerem por falta de oxigênio. Ontem, a Fiocruz também levantou a possibilidade de a P.1 já ser responsável pela maior prevalência de mutações nos oito Estados avaliados. Apesar do avanço das variantes, o Brasil reduziu no começo do ano o número de sequenciamentos genéticos, essencial para rastrear as cepas.

O virologista Mauricio Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, reforça a ressalva feita por Ester de que o simples fato de a variante com mais mutações surgir não pode ser considerada a única explicação para o cenário de caos que se instalou no País. "Estamos dando oportunidade para esse acaso acontecer, para que o vírus gere a maior quantidade do mundo de mutações", diz.

Nogueira explica que o surgimento das variantes é matemático. "A cada X multiplicações, vai ter mutação. Quanto mais multiplicar, mais variantes vai gerar. Agora no Brasil é onde o vírus mais está se multiplicando, é onde já há o maior número de novos casos por dia. Se essa variante tem a oportunidade de ser transmitida quando a pessoa onde a mutação surgiu pega um avião lotado, vai ao cinema, ao restaurante... aí estamos nos tornando um celeiro de variantes e distribuindoas à vontade dentro do País", alerta.

Para o virologista Felipe Naveca, pesquisador da Fiocruz Amazônia à frente dos estudos que mostraram a prevalência da P.1 em Manaus e como a linhagem é mais transmissível, esse é um risco que pode ocorrer onde houver o descontrole.

"O Brasil e todos os países que deixaram o vírus correr solto estão sendo incubadoras de novas variantes. Relatos nesta semana apontam para mais duas prováveis novas variantes de preocupação nos Estados Unidos: na Califórnia e em Nova York. Em todos os países com esse discurso de que devemos deixar o vírus circular para dar imunidade (de rebanho), a gente está vendo o que está acontecendo", comenta.

Evolução. De acordo com o pesquisador, nos últimos quatro meses houve aceleração da evolução do vírus. "Está claro. Não somos só nós, todos os grupos de pesquisa estão mostrando isso. O surgimento da linhagem do Reino Unido, da África do Sul e do Brasil mostram que o vírus deu um salto de evolução", diz Naveca. "Então, a chance de termos novas variantes cada vez mais adaptadas ao ser humano é muito grande se a gente continuar dando essa liberdade para o vírus", frisa.

Conveniência

"É muito conveniente para a sociedade, políticos e autoridades afirmarem que a culpa é da variante mais transmissível. Como se tivessem feito tudo para conter o problema, mas a variante tomou conta da cidade. Se tivéssemos tomado as medidas de segurança, não teria acontecido. A forma de prevenir é: distanciamento social e uso de máscara."

Maurício Nogueira

VIROLOGISTA

PONTOS-CHAVE

Na P.1, mais de 20 mutações de uma só vez

REUTERS

• O que o'corre

Nesse movimento de evolução do vírus, de vez em quando podem aparecer mutações, chamadas de VOCs (variantes de preocupação, na sigla em inglês).

• Sem explicação

Em geral, no decorrer de uma epidemia, um vírus pode apresentar de uma a duas mutações por mês. No caso da P.1 brasileira, foram cerca de 20 de uma vez.

• Risco à vista

De oito Estados que passaram pela análise genética da Fiocruz, em seis a presença da mutação ocorreu em mais da metade das amostras.