O Estado de São Paulo, n. 46527, 07/03/2021. Política, p. A8

Ministro repudia omissão de cartório
Rafael Moraes Moura
Breno Pires
07/03/2021



Marco Aurélio Mello, do STF, acha “condenável’ ação do 4º Ofício que ocultou dados da escritura do imóvel comprado por Flávio Bolsonaro

Mansão de Flavio Bolsonaro no setor Dom Bosco, em Brasilia. Prestações representam 70% do salário do senador

O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse ao Estadão que é “condenável” e “muito ruim em termos de avanço cultural” a atitude do cartório no qual o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) registrou a compra de uma casa de R$ 6 milhões em Brasília. Conforme revelou o jornal, o cartório escondeu informações da escritura pública do imóvel, documento com os dados do negócio que deve ser acessível a qualquer pessoa que o solicitar.

O ato, do 4.º Ofício de Notas do Distrito Federal, contraria a prática adotada em todo o País e representa tratamento diferenciado ao filho do presidente Jair Bolsonaro, segundo especialistas. “É tudo muito ruim em termos de avanço cultural. A boa política pagou um preço incrível, abandonando a transparência e a publicidade. Algo condenável a todos os títulos”, afirmou Marco Aurélio Mello.

“Vem-nos da Constituição Federal, do artigo 37, que atos administrativos, como no caso o ato do cartório, são públicos, visando ao acompanhamento pelos contribuintes e a busca de fiscalização. É incompreensível a omissão. E por que omitir? Há alguma coisa realmente que motiva esse ato, porque nada surge sem uma causa.”

Na cópia da escritura obtida pela reportagem no cartório, foram omitidas informações como os números dos documentos de identidade, CPF e CNPJ de partes envolvidas, bem como a renda de Flávio e de sua mulher, a dentista Fernanda Antunes Figueira Bolsonaro.

Marco Aurélio Mello questionou a atitude do senador, de optar por um cartório em Brazlândia, região administrativa que fica a 50 km do centro de Brasília. “É estranho que não se tenha feito a escritura num cartório de Brasília propriamente dita”, comentou.

Ministros de tribunais superiores ouvidos reservadamente também condenaram a atitude do cartório. Para eles, a omissão dos dados em uma escritura pública pode caracterizar improbidade administrativa e ser investigada pelo Tribunal de Justiça do DF e Territórios e pelo Conselho Nacional de Justiça. Integrantes do CNJ consultados pelo Estadão, no entanto, observam que o assunto deve ser levado à Corregedoria do próprio TJDFT. Segundo eles, uma eventual ação do conselho deveria ser excepcional, apenas quando o tribunal não agir.

Financiamento. Para comprar o imóvel, o filho “01” de Bolsonaro financiou R$ 3,1 milhões no Banco de Brasília (BRB), com parcelas mensais de R$ 18,7 mil. Como revelou o Estadão, as prestações representam 70% do salário líquido de Flávio – R$ 24,7 mil.

Na última sexta-feira, o titular do cartório de Brazlândia, Allan Guerra Nunes, disse que escondeu as informações da escritura para preservar dados pessoais do casal. Nunes é presidente da Associação dos Notários e Registradores do Distrito Federal (Anoreg-DF).

Segundo ele, esta foi a primeira vez em que tal procedimento foi adotado. “Zero de motivação política, nenhuma. Quem decidiu colocar a tarja fui eu.”

Em nota, o Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil informou que o tabelião de Brazlândia levou em conta a entrada em vigor a Lei Geral de Proteção de Dados ao esconder as informações.

A lei, no entanto, não foi mencionada pelo próprio tabelião nas duas ocasiões em que conversou com a reportagem. De acordo com a entidade, o caso será enviado pelo próprio tabelião para análise da Vara de Registros Públicos do TJ.

Para o tabelião Ivanildo Figueiredo, professor de Direito Notarial na Faculdade de Direito do Recife, a posição do Conselho “se revela como meramente corporativista, sem qualquer conteúdo crítico com relação à censura de uma escritura pública”.

“A autonomia e independência do tabelião se resume a gerenciamento administrativo e financeiro, e não ao conteúdo ou forma dos atos notariais.”

PARA LEMBRAR

Termos foram vantajosos

A casa de Flávio Bolsonaro tem 1,1 mil m², quatro suítes amplas, academia, piscina e spa – e foi vendida em anúncio como “a melhor vista de Brasília da suíte máster”. O imóvel custou R$ 5,97 milhões, mas a maior parte, R$ 3,1 milhões, foi financiada pelo Banco de Brasília. A escritura pública registra que Flávio deu de entrada R$ 2,87 milhões. No entanto, de acordo com advogados do empresário Juscelino Sarkis, sócio da empresa que vendeu o imóvel, o parlamentar fez depósitos que até agora somam R$ 1,09 milhão, de forma parcelada. Esses valores constam de nota divulgada pelos advogados de Sarkis, o que contradiz as informações apresentadas na escritura. Segundo especialistas, como a escritura é um documento que serve como prova, a situação poderia ser enquadrada como falsidade ideológica. As condições do financiamento do imóvel foram bastante vantajosas. Segundo o simulador do banco, um financiamento como o obtido pelo senador, nos mesmos prazos, exigiria uma renda líquida de R$ 46,8 mil. O salário do senador, após os descontos, cai para R$ 24,9 mil. E Flávio, como revelou o Estadão, desembolsou mais R$ 181.111,85, à vista, em taxas e impostos.