Título: A Constituição da Europa
Autor: Dalmo Dallari
Fonte: Jornal do Brasil, 12/03/2005, Outras Opiniões, p. A11

A Europa deverá adotar uma Constituição que será comum a todos os Estados europeus. No processo de adoção da Constituição européia deverá nascer uma pessoa jurídica chamada União Européia, que poderá estabelecer relações com os Estados de outras partes do mundo, bem como com organizações regionais e internacionais de modo geral. Assim, por exemplo, quando entrar em vigor essa Constituição, o Brasil poderá celebrar tratados com a União Européia, tanto no âmbito comercial quanto no das relações individuais, incluindo-se aí as relações de família, os direitos patrimoniais, a responsabilidade criminal e outros aspectos relevantes da convivência humana. Os Estados europeus e suas constituições não irão desaparecer, e os tratados celebrados até agora poderão continuar em vigor, podendo também ocorrer a celebração de novos tratados com Estados europeus isoladamente, observada a compatibilidade entre esses tratados e o que dispuser a Constituição européia.

Um mundo novo está nascendo e as regras que irão regê-lo ainda deverão passar por muitas discussões, mas, sem qualquer dúvida, o que já aconteceu até agora visando esse objetivo e os próximos passos que serão dados são muito importantes. A criação da União Européia como pessoa jurídica, com capacidade para celebrar tratados, cria uma nova opção para todos os Estados do restante do mundo, inclusive para o Brasil, devendo abrir novas possibilidades mas tornando absolutamente necessária a preparação dos Estados não-europeus para uma nova ordem mundial. Considerando esse extraordinário avanço europeu e, ao lado dele, a presença da nova China, que já vem participando intensamente das atividades econômicas do mundo capitalista, uma conclusão segura é que não haverá mais a hegemonia de um Estado poderoso, capaz de impor sua vontade e de promover seus interesses com o mais absoluto desprezo pelo direito e pelos valores humanos, como ainda vêm fazendo os Estados Unidos em algumas partes do mundo.

Por todos esses motivos, os brasileiros devem ficar muito atentos à evolução da União Européia, procurando acompanhar e compreender o processo de sua implantação, devendo-se exigir especial atenção e a atualização de conhecimentos e de mentalidade daqueles que de alguma forma, na área pública ou privada, atuam ou podem vir a atuar em âmbito internacional. Para que se compreenda essa exigência, basta lembrar que muitos brasileiros que hoje ocupam posições de influência foram formados no período da guerra fria, quando o mundo estava praticamente dividido em dois campos: o mundo capitalista, comandado pelos Estados Unidos, e o mundo comunista, chefiado pela União Soviética, ambos usando da força econômica ou militar para impor obediência e garantir a prioridade de seus interesses. Nesse quadro, quem não aceitasse a liderança dos Estados Unidos era considerado adepto da União Soviética e vice-versa. Isso deixou marcas profundas e ainda hoje há no Brasil muita gente com essa mentalidade, o que explica, por exemplo, a resistência irracional ao Mercosul e a toda iniciativa que possa contrariar os interesses dos Estados Unidos. Aí está, também, a explicação para a aceitação passiva de imposições humilhantes de autoridades e até mesmo de funcionários subalternos estadunidenses, esquecendo-se de que o Brasil é um Estado soberano, com o direito de exigir respeito e reciprocidade, além de ser o maior país da América Latina, com o qual é muito conveniente manter boas relações.

Em conclusão, a aprovação da Constituição européia faz parte do processo de nascimento de um mundo novo, no qual deverão existir várias opções para os Estados e os povos, estabelecendo-se um novo equilíbrio mundial, o que será altamente benéfico para a busca de relações mais justas entre os Estados. Não há dúvida de que nessa nova ordem mundial será bem mais difícil a prática de arbitrariedades, de violência e de chantagem contra os povos mais desprotegidos e vulneráveis e contra aqueles que dispuserem de riquezas naturais muito cobiçadas, como o petróleo ou outras valiosas reservas vegetais ou minerais. Os brasileiros devem procurar participar ativamente da definição desse mundo novo, pois esse é o caminho para que, assegurada a prioridade aos valores humanos e baseando-se no direito, não na força, as relações entre os povos, a humanidade possa viver em paz.