Título: O laico e o laicismo
Autor: Eugenio Sales
Fonte: Jornal do Brasil, 12/03/2005, Outras Opiniões, p. A11

Tentam discriminar a Igreja, embora ela seja maioria no país

O conceituado quinzenário Civiltà Cattolica, de Roma, publicou, em dezembro do ano passado, um editorial sob o título: ''A Igreja é uma fortaleza sob o assédio das forças inimigas?'' Quem acompanhou de perto as vicissitudes por que passou a obra de Cristo no final do século passado e no início deste novo milênio, constata um extraordinário progresso, mas, sob outros ângulos, um recuo na adesão à prática religiosa cristã. Assim, a trajetória dos últimos Sucessores de Pedro e, de maneira particular no Pontificado de João Paulo II, vê-se o crescimento de ataques à doutrina católica e, em especial, aos ensinamentos de ordem moral.

A União Européia excluiu da sua Constituição qualquer referência às raízes cristãs, tão vivas e atuantes em todos os países que a integram. Na Espanha, o governo socialista, no poder há pouco, anuncia reformas em matéria de casamento, divórcio, união de homossexuais, em um rumo oposto à família segundo o conceito cristão. Em Estrasburgo, sede da União Européia, o Parlamento Europeu, em recente eleição, vetou o nome do deputado Rocco Buttiglione, claramente alegando sua adesão a princípios católicos. A retirada das salas de aula, nas escolas públicas da França, da imagem de Jesus Crucificado foi feita sob a alegação de ser leigo o Estado. O mesmo tem ocorrido em várias partes do mundo, inclusive entre nós, no Brasil. Assuntos profundamente vinculados à Fé cristã são examinados com vistas a modificações claramente anticlericais. A posição contrária ao ensino religioso confessional nas escolas públicas, mesmo respeitadas as confissões religiosas dos alunos, é um exemplo. Acrescento o tratamento da lei sobre o aborto, as pesquisas sobre células-tronco acobertadas pelo caráter científico ou de caridade com os enfermos. Tentam discriminar a Igreja, embora ela seja maioria no País. A crescente agressividade do laicismo faz perder as características da laicidade para se tornar um laicismo ideológico e, portanto, intolerante e agressivo. Uma confusão de conceitos, fruto de um ultrapassado ideário característico da Revolução Francesa. No entanto, a Igreja afirma ser leiga, no sentido de ''separada do Estado''. Ela também propugna por essa situação jurídica entre a religião e o governo Civil, mas é contrária a suprimir o papel fundamental da consciência cristã do indivíduo que professa sua Fé. O Concílio Vaticano II é favorável à ''autêntica autonomia das realidades temporais''. A ''Lumen Gentium'', nº 36, reconhece ''que a cidade terrena se consagre, a justo título, aos assuntos temporais e se reja por princípios próprios''. Recorda a frase de Jesus: ''Daí a César o que é de César e a Deus o que Lhe pertence'' (Mt 22,21). Ao mesmo tempo, o Concílio rejeita ''a nefasta doutrina que pretende construir a sociedade sem ter em conta a religião, atacando e destruindo a liberdade religiosa dos cidadãos''. O mesmo Concílio, em Gaudium et Spes, nº 43: ''Não se oponham, infundadamente, as atividades profissionais e sociais, por um lado, e a vida religiosa, por outro (...). O cristão que descuida de seus deveres temporais (...) põe em risco sua salvação eterna''. O leigo que é, simultaneamente, cristão e cidadão, deve sempre guiar-se, em ambas as ordens, por uma única consciência, a cristã'' (Apostolicam Actuositatem, nº 6).

Na raiz do anticlericalismo, ataques à Igreja, está a exploração de falhas humanas. Isto vem crescendo nos últimos tempos, como aqui tenho observado em várias oportunidades. No entanto, a Igreja, na difusão de sua doutrina, não tolhe a liberdade, como fazem seus detratores. Estes temem, infundadamente, que ela queira dominar a sociedade. Na verdade, ela respeita a liberdade na formação da consciência dos cidadãos. Assim, eles podem modificar os princípios reinantes na sociedade que se acha marcada pelo domínio da libertinagem sexual, do iluminismo, racionalismo e tantos outros sistemas. A atuação da Igreja não consiste em buscar vantagens para si, mas em favor da própria sociedade leiga. O verdadeiro laicismo defende seu campo específico, respeita a liberdade religiosa e o direito de expor a doutrina, católica ou não, formadora de uma consciência que respeite os ensinamentos cristãos. O laicismo ideológico, que cresce em nossos tempos, está na raiz dos ataques aos princípios religiosos e, também, de muitos problemas que afligem a sociedade civil. Com freqüência se situam no terreno do matrimônio, da família, do aborto, da autonomia da ciência diante da dignidade da pessoa humana e, em particular, da vida humana.

Um ingrediente que não deve ser esquecido é a autonomia do homem que pode se tornar contrário aos homens. Os fatos ocorridos nos últimos decênios vêm mostrar o surgimento, em escala mundial, de aberrações que eram julgadas como desaparecidas após a II Guerra Mundial. Fazer experiências a título de salvar indivíduos é um assunto que requer o máximo de cautela e coragem para rejeitar tudo e sempre o que a lei natural condena.

Há poucos dias, recordava-se o 60º aniversário da libertação dos presos que restavam no Campo de Auschwitz-Bierkinau. Parecia inacreditável que o ser humano pudesse chegar a esses extremos. Com outros nomes, essa aberração continua viva até nossos dias. Basta recordar os atos de terrorismo. As propostas, de qualquer concessão, no campo da vida humana, os repetidos atos praticados por pessoas, até então insuspeitas, nos levam a reconhecer o quanto frágil é o ser humano diante da ideologia. A preservação da vida humana não pode ficar à mercê de outro ser humano. Refiro-me às decisões que envolvem o aborto, o aproveitamento de embriões e outros procedimentos, retirando-os do único Senhor da vida, Deus. Afastá-lo da vida pública é condenar a sociedade ao retorno à barbárie.