Correio Braziliense, n. 21195, 05/06/2021. Política, p. 2

Ferida aberta na cúpula do Exército
Augusto Fernandes
Sarah Teófilo
05/06/2021



Enquanto comando da Força silencia, general da reserva Santos Cruz classifica como ataque à disciplina a decisão de não punir Pazuello por participação em ato político. Ex-ministro da Defesa, Celso Amorim diz que Bolsonaro tem agido para "domesticar" instituição

A interferência do presidente Jair Bolsonaro no Exército para livrar o general da ativa e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello de punição, por participar de ato político a favor do governo, em 23 de maio, deixou insatisfeita uma parcela dos integrantes das Forças Armadas. Para alguns militares, nunca houve na história um episódio de tamanha humilhação da instituição, o que representa um risco à democracia e ao futuro do país. Houve, também, surpresa e frustração entre militares de alta patente. Eles esperavam algum tipo de punição, ainda que muito branda.

Um dos que acreditavam nisso era o próprio vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB). Ele chegou a dizer, publicamente, que o ex-ministro provavelmente seria punido. Dias depois, afirmou que o Exército precisava dar uma resposta para não banalizar a participação de integrantes das Forças Armadas em outros atos políticos e "evitar que a anarquia se instaure". Agora, porém, o vice não quis comentar a decisão do Exército.
Mas se a maioria de alta patente prefere silenciar sobre o caso, o ex-ministro da Secretaria de Governo de Bolsonaro e general da reserva Santos Cruz não mediu palavras. Ele classificou o episódio como uma "desmoralização para todos nós" e um "péssimo exemplo para o Brasil". Segundo ele, houve um ataque frontal à disciplina e à hierarquia, princípios fundamentais à função militar.

"Não se pode aceitar a subversão da ordem, da hierarquia e da disciplina no Exército, instituição que construiu seu prestígio ao longo da história com trabalho e dedicação de muitos", enfatizou, em publicação nas redes sociais. Ele destacou, também, que a politização das Forças Armadas para interesses pessoais e de grupos tem de ser combatida. "É um mal que precisa ser cortado pela raiz."

"Projeto de poder"

O militar não poupou críticas a Bolsonaro. No entendimento de Santos Cruz, esse foi "mais um movimento coerente com a conduta do presidente da República e com seu projeto pessoal de poder". "A cada dia, ele avança mais um passo na erosão das instituições. Frequentemente, com sua conduta pessoal, ele procura desrespeitar, desmoralizar pessoas e enfraquecer instituições. Falta de respeito pessoal, funcional e institucional. Desrespeito ao Exército, ao povo e ao Brasil", disparou.

"À irresponsabilidade e à demagogia de dizer que esse é o 'meu exército', eu só posso dizer que o 'seu exército' não é o Exército Brasileiro. Este é de todos os brasileiros. É da nação brasileira", continuou o ex-ministro. Por fim, ele declarou que "independentemente de qualquer consideração, a união de todos os militares com seus comandantes continua sendo a grande arma para não deixar a política partidária, a politicagem e o populismo entrarem nos quartéis".

Quem já esteve na posição de exercer a direção superior das Forças Armadas também repudiou o caso. Ex-ministro da Defesa, Celso Amorim lamentou a falta de punição a Pazuello e disse que houve um desrespeito ao regulamento do Exército, o que afeta a integridade da Força e piora a confiança da população em relação a qual será o papel dessa instituição a partir de agora. Na avaliação de Amorim, esse episódio reforça a pior crise da história das Forças Armadas, que começou em março, com a demissão do então ministro Fernando Azevedo e a posterior troca dos comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica.

Ao Correio, Amorim ponderou que Bolsonaro tem agido para "domesticar o Exército e tirar dele o caráter de uma instituição de Estado". "A coisa mais preciosa para o militar é o cumprimento da lei, mas o Exército está demonstrando ser uma instituição de governo, de uma pessoa. Não deveríamos ter o Exército ou as Forças Armadas de uma pessoa, de um imperador. Nós não temos imperador, temos uma República. O presidente tem autoridade, mas dentro da lei", ressaltou.

Amorim alertou que, se o Exército deu de ombros para o caso de Pazuello, pode ser mais conivente com eventuais atitudes de Bolsonaro que atentem contra a democracia. Ele disse temer que o estopim aconteça no ano que vem, com a Força nada fazendo para impedir que apoiadores do presidente invadam o Congresso no caso de derrota do mandatário na busca pela reeleição.

Especialista em relações internacionais, Juliano da Silva Cortinhas afirmou que "a mensagem passada é de que não haverá punição". "Faz parte de uma nova normalidade. É possível que militares de baixa patente sejam punidos por não terem o mesmo peso político de Pazuello, mas isso seria uma incoerência. A mensagem do comando é de que a participação deles na política é aceitável e não será punida", frisou.