Título: Ética e ciência
Autor: Sérgio Abramoff
Fonte: Jornal do Brasil, 19/03/2005, Outras opiniões, p. A11

Aprendi que todos os seres, brancos ou negros, judeus ou muçulmanos, são iguais. Todos sofremos por uma ou por outra razão, e buscamos alívio para o sofrimento

As células-tronco são assim chamadas por terem duas características básicas: são capazes de se dividir de forma ilimitada (enquanto o organismo em que se encontram estiver vivo) e são também capazes tanto de se multiplicar dando origem a outras células tronco-idênticas como se diferenciar em células de inúmeras diferentes características e funções (células musculares, cardíacas, hepáticas, cerebrais etc).

Após muitos anos de estudo da biologia de células-tronco de cobaias, em 1998, conseguiu-se isolar estas células a partir de embriões humanos armazenados em clinicas de infertilidade, e estimular seu crescimento em pesquisas de laboratório. As células-tronco provenientes destes embriões de poucos dias de criação são pluripotentes, podendo dar origem a qualquer outra célula do corpo humano, exceto as necessárias para criar outro embrião, podendo criar linhagens de crescimento continuado nos laboratórios, ou serem congeladas para armazenamento e/ou distribuição a outros pesquisadores.

Em futuro não muito distante os cientistas poderão, através da engenharia genética, alterar genes nestas células tronco responsáveis por inúmeras doenças, e reimplantá-las no organismo, alterando o curso de doenças graves e intratáveis (doença de Parkinson, doença de Alzheimer, esclerose múltipla, transplante de órgãos, traumas medulares, diabetes e inúmeras outras doenças metabólicas), isto sem falar no câncer e nos defeitos congênitos.

As questões éticas envolvidas nestas pesquisas são enormes. Antes de tudo, será que neste caso os fins (o alívio do sofrimento humano) justificam os meios (a utilização de embriões não aproveitados nas clínicas de fertilização)? Para a Igreja, coerente com a sua linha de respeito à vida nas formas mais incipientes, a resposta seria diferente daquela de um pai que possui um filho tetraplégico em conseqüência de um acidente, ou de um filho cujo pai agora tem a morte anunciada por uma doença grave irreversível. Ambas as posições são previsíveis e devem ser respeitadas, evitando-se o confronto e promovendo-se o debate e o esclarecimento da opinião pública.

Em medicina aprendemos a ter bom-senso para não querer salvar um paciente de um destino que ele não iria ter. Exemplificando, a maioria dos homens que viverem mais de 75 anos terão câncer de próstata, mas morrerão por outras causas, e não devido ao câncer. Operar a sua próstata não traria assim nenhum benefício. O mesmo bom-senso nos aponta para o fato de não podermos salvar ou matar um embrião que jamais se desenvolveria, jamais teria um útero a lhe direcionar para a realização de uma vida humana. Não podemos nos considerar assassinos de uma vida que jamais existiria.

Outro argumento, de que se poderiam fazer mau uso desta tecnologia para clonagem ou experiências de melhora da raça em descendentes, realmente preocupa e muito, mas infelizmente esta malversação é típica do procedimento humano. Como judeu, trago em minha história o sofrimento das fogueiras, das privações, dos campos de extermínio e das câmaras de gás, bem sei do que somos capazes. Esta faceta negra da complexidade humana, no entanto, não justifica fecharmos as portas para a possibilidade de alívio para o sofrimento de tantos e tão próximos, assim como não fechamos as portas da Igreja pelos casos alarmantes de pedofilia. O distorcido não deve contaminar a esperança humana, ou nossa tragédia não seria somente previsível como hoje, mas também covarde e deprimente.

Aprendi como médico que todos os seres, pobres ou ricos, brancos ou negros, judeus ou muçulmanos são iguais. Todos sofremos por uma ou por outra razão, e todos buscamos o alívio para este sofrimento. Sou a favor das pesquisas agora liberadas em nosso país, mas respeito tanto a posição mais ortodoxa da Igreja, quanto a ousadia e os limites por vezes discutíveis de cientistas e poetas. Não nos deixemos embriagar por certezas muito radicais, não percamos de vista o incansável esforço para nos tornarmos seres humanos mais dignos e compassivos. O restante é apenas mistério, de outro modo como justificar que as células-tronco não possam gerar outro embrião pelo simples fato de que as únicas células em que não conseguem se diferenciar sejam as células placentárias? Sejamos então humildes, e apenas busquemos nos alinhar com o bem.