Título: As tentações de Frei Betto
Autor: Deonísio da Silva
Fonte: Jornal do Brasil, 22/03/2005, Outras Opiniões, p. A11

Homem de Deus, ele tem convivido com vários Diabos, que freqüentam seus livros

Até o pobre Diabo mudou no novo livro de Frei Betto. Figura polêmica, referência intelectual no Brasil e em muitos países, Carlos Alberto nasceu escritor e depois se tornou frade. Não pode abominar nenhuma crítica, por mais injusta que seja ou pareça: um homem com a sua biografia desperta controvérsias. No passado, alternou a vida no tugúrio do mosteiro, cercado de homens piedosos, com a pena que cumpriu no cárcere do presídio Carandiru, em São Paulo, rodeado de perigosos facínoras, que o respeitavam porque os administradores diziam ser Frei Betto um temível terrorista envolvido na luta armada contra a ditadura militar.

Recentemente renunciou ao cargo de assessor especial do presidente Lula. Fiel ao amigo, não declina as razões que o levaram a demitir-se, alegando precisar de mais tempo para escrever. Antes não precisava? É evidente que no Palácio do Planalto estão ocorrendo sérias dissensões, pois vazam informes de que a maioria dos ministros é contra a política adotada pela equipe econômica, onde muitos cristãos vêem o dedo de Satanás. Mas o presidente Lula por certo a endossa!

Se a cada ataque, calúnia ou insinuação recebida, porém, Frei Betto fosse aos tribunais ao longo das últimas décadas, teria provavelmente recebido várias indenizações, retratações e pedidos de desculpas. Contudo, o que mais quer é escrever, e demandas judiciárias iriam reduzir ainda mais o tempo dedicado à literatura.

E é no terreno das letras que ele é mais vulcânico. Seus artigos e livros representam um desafio formidável a quem se aventurar a examinar-lhe o perfil. Homem de Deus, ele tem convivido com vários Diabos. Transformados em personagens, freqüentam seus romances e contos apresentando faces e comportamentos insólitos. Não insólitos por ser próprio de Diabos fazer o que fazem, mas pelos comportamentos que esse frade dominicano lhes atribui. Frei Betto, seja como escritor, seja como frade, é um caso a estudar. Um diabo piedoso, depois de bebericar e conversar com assíduo freqüentador de uma taberna, acaba tocando fogo no recinto, mas em horas mortas, para evitar vítimas. O fio condutor das narrativas é a presença de anjos e diabos nos treze contos diabólicos e um angélico.

Se examinarmos o poder à luz desse notável livro de contos de Frei Betto, que admite a existência do Diabo e, mais do que isso, arma estratégias de combate ou de convivência com o pai das desuniões (Diabolos), os que buscam unidade (Símbolos) são enfim entendidos!

Rodrigo de Almeida lembrou-lhe com sagacidade e granus salis nos bastidores da entrevista que Frei Betto concedeu há pouco mais de uma semana ao Jornal do Brasil, que outros escritores mineiros demonstraram entender de Diabos, que, aliás, lhes parecem de fácil compreensão. O maior deles resumiu esplêndido romance numa frase: ¿o Diabo na rua, no meio do redemoinho¿.

No século passado, o pobre Diabo ainda perambulava pelas ruas. Agora, dado o que aprontam maiorais em todo o mundo, ele mudou-se para dentro dos palácios, onde enfrenta anjos, arcanjos, serafins, tronos e potestades, todos imobilizados pelas astúcias do Demo.

Se o presidente precisar esconjurar Diabos que o rodeiam no Palácio do Planalto e longe dali, poderá recorrer de novo a Frei Betto, que muitas vezes foi única presença na hora das três derrotas que pavimentaram a caminhada do amigo, rumo ao Palácio do Planalto. E Frei Betto, digam o que digam dele, é sempre o mesmo, na alegria e na tristeza, na vitória e na derrota. Com a mesma serenidade, freqüenta palácios e periferias.