Título: ''A reeleição é a única prioridade''
Autor: Israel Tabak
Fonte: Jornal do Brasil, 28/03/2005, País, p. A2

Deputado federal pelo antigo Partido Democrata Cristão, o advogado Plinio de Arruda Sampaio integrou a lista dos 100 primeiros brasileiros cassados, logo após o golpe militar de 1964. Depois do exílio no Chile e nos Estados Unidos, retornou ao país e à vida política, disposto a trilhar os caminhos do socialismo democrático. Em 1981 entrou para o PT, elegeu-se de novo deputado federal e chegou a integrar o governo Lula, quando coordenou o 2º Plano Nacional de Reforma Agrária. Desiludido pelas restrições financeiras ao plano, indaga hoje: ¿Há de fato vontade política de realizar a reforma agrária?¿ Este é um dos muitos questionamentos que Plinio faz sobre os rumos do governo e do seu partido, ¿que sofreu um enorme desvio ideológico¿. Lançado candidato à presidência do PT pelos setores de esquerda da legenda, afirma que o debate interno está ¿asfixiado¿. De acordo com a sua análise, a corrente que tem como principal objetivo a corrida eleitoral ¿ no sentido de ocupar postos da estrutura do estado ¿ sobrepujou a que privilegia a organização popular para combater as injustiças sociais: ¿ O governo coloca a reeleição como prioridade primeira e única ¿ critica.

¿ O seu nome foi lançado para a presidência do PT, em nome do bloco de esquerda do partido. Qual o significado da sua candidatura?

¿ Convém deixar claro que ainda não existe candidatura. O nome foi lançado com o propósito de buscar um candidato que una setores de esquerda do PT e seja capaz de levar o debate eleitoral, hoje interno, para a opinião pública. Os que propuseram meu nome entendem que tenho perfil para a tarefa.

¿ Ainda soa estranha a expressão ¿setores de esquerda do PT¿. O partido agora é de centro?

¿ O estatuto do PT ainda contém um artigo dizendo que o partido visa à instauração do socialismo no país. Mas o apoio da direção partidária à política econômica do governo Lula nestes dois anos mostra que houve um enorme desvio ideológico. Se esse tipo de política permanecer, o PT deixa de ser o partido da transformação social, tornando-se um ¿partido da ordem¿.

¿ O ministro José Dirceu anunciou a disposição do governo em negociar com partidos de centro-direita. Foi mais um choque para a miltância...

¿ Pode-se imaginar o tamanho do choque. A única interpretação possível é que o governo coloca a reeleição como prioridade primeira e única. Essa estratégia costuma ser decepcionante, porque em política, há um axioma poucas vezes desmentido: todas as vezes que um político de esquerda adota um discurso de direita na esperança de conseguir votos, perde o apoio dos antigos eleitores e termina por não ganhar nada da direita, que prefere votar nos seus autênticos representantes.

¿ Na Europa, há uma longa história de partidos socialistas democráticos que dão uma guinada para a direita quando chegam ao poder. Esta é a sina da esquerda democrática?

¿ Não se trata de uma sina, mas de um erro político: confundir governo com poder. Para realizar uma política de transformação social é preciso ter força. A chefia do Executivo significa apenas o controle de um dos vários aparelhos do estado. Mas gera nas pessoas a ilusão de que detêm todo o poder. Os partidos de esquerda não são imunes a essa ilusão e, muitas vezes, aproveitam uma oportunidade conjuntural para conquistar o governo. Chegando lá, vêem-se obrigados a fazer tantas concessões que se desfiguram.

¿ O senhor acredita que se o governo não tivesse optado por uma política econômica ortodoxa seria facilmente desestabilizado?

¿ Todos os setores inconformados com a atuação do governo Lula sabem que o PT conquistou o governo mas não o poder. Por isso, nenhum deles está sugerindo que Lula tome medidas de transformação socialista. O que se pede é pouco: não continuar a política econômica do FMI. Pois, neste caso não terá como cumprir compromissos assumidos na campanha eleitoral. Se nem isto é possível sem provocar desestabilização, cabe perguntar: qual a vantagem de ter conquistado a Presidência? Não acredito, por exemplo, que se o governo recusar-se a manter um superavit tão elevado, o mercado retaliará, desestabilizando a economia. Porque desestabilizar a economia de um pais de quase duzentos milhões de habitantes tem conseqüências políticas. Sobretudo, quando tal atitude inviabiliza o governo de um presidente eleito com mais de cinqüenta milhões de votos. Porém, quero deixar claro: mesmo que acreditasse no risco de desestabilização, o governo não deveria aceitar a chantagem. O medo de represália não pode ser o critério.

¿ É possível fazer alianças com forças consideradas fisiológicas e ao mesmo tempo manter o ideário de transformação social, característico do PT?

¿ Todos sabem que é preciso fazer alianças. Em 1989 defendi a necessidade de alianças com o PSDB e com o PMDB, a fim de eleger Lula no segundo turno. Obviamente, os tempos eram outros e esses partidos também eram outros. Menciono a circunstância apenas para deixar claro que não se trata de uma posição de principio contra alianças. O problema é: Que tipo de alianças se faz e com que objetivo? Também importa deixar claro quem lidera realmente o grupo coligado e para onde quer levá-lo. Atualmente, no PT, qualquer proposta que possa desagradar a ¿base aliada¿ é imediatamente vetada. Ora, então é de se supor que são os partidos conservadores coligados, e não o PT, que lideram a aliança.

¿ Dê um exemplo.

¿ Os índices de produtividade dos imóveis rurais estão muito defasados e isto provoca demora nas desapropriações. A lei determina que esses índices sejam atualizados periodicamente. O governo dispõe dos estudos para a fixação dos novos índices. Falta unicamente a publicação de uma portaria firmada pelos ministros da Agricultura e do Desenvolvimento Agrário. Mas, nestes dois anos foi impossível conseguir a publicação dessa portaria, porque desagrada setores da ¿base aliada¿. Uma outra condição para a política de alianças é a reação do público. Até onde posso ver, a maioria dos petistas e dos eleitores de Lula não aceita alianças com políticos fisiológicos, uma vez que o PT tem um histórico de combate frontal a esse tipo de conduta.

¿ Sem alianças não há governabilidade, segundo o Planalto...

¿ O conceito de ¿governabilidade¿ parece ter sofrido grandes modificações. Sempre entendi que um governo perdia a ¿governabilidade¿ quando não tinha mais condições de manter as instituições da Republica em funcionamento normal, o que se refletia na impossibilidade de manter a ordem pública ¿ enfim, quando se configurava um quadro de quase insurreição. Hoje, governabilidade quer dizer: não perder votações no Congresso. Um presidente pode perder votações e manter perfeitamente a governabilidade. O regime é presidencialista e a Constituição oferece ao chefe do Executivo instrumentos para governar em minoria no Congresso. Além do mais, como líder político da nação, o presidente pode conseguir a aprovação de leis acionando a opinião pública para que ela pressione, democraticamente, a maioria que se recusar, por mera politicagem, a aprovar projetos de interesse do povo.

¿ Como o senhor analisa as políticas sociais do governo Lula, que os críticos chamam de assistencialistas?

¿ A diferença entre as políticas sociais do Lula e as do governo anterior é de enfoque: as políticas anteriores eram concebidas como medidas meramente compensatórias destinadas aos marginalizados ¿ bolsões da população não incorporáveis à economia moderna. O objetivo era aliviar a pobreza para evitar o agravamento das tensões sociais. As políticas sociais de Lula têm o objetivo de proporcionar às populações pobres meios de superar sua pobreza e de se integrar à economia brasileira. Por isso mesmo precisam articular-se com reformas estruturais como a agrária, a política de pleno emprego, a reforma urbana, a reforma do sistema pesqueiro, educacional e outras. O grande problema é que as medidas ¿estruturantes¿ estão bloqueadas pelas restrições financeiras decorrentes da famigerada política econômica. O Fome Zero, por exemplo, que é uma grande idéia, sem uma concomitante reforma agrária acaba sendo um programa meramente assistencialista.

¿ A esquerda tradicional estaria perdendo terreno para o populismo e os evangélicos pentecostais?

¿ A primeira etapa do processo de participação das massas na esfera da política foi o populismo: o apoio eleitoral popular passou a ser um elemento essencial para que uma facção política das elites dirigentes assumisse o governo da República. As classes populares conseguiram o que os cientistas políticos chamam de participação ¿vicária¿, isto é, exercida por meio de representantes que não pertenciam à classe popular. O surgimento do PT representa precisamente a tentativa de superar o populismo por uma participação direta do setor popular na esfera da política. Mas foi apenas uma ¿cabeça de ponte¿ no espaço que constitui até hoje território privativo das elites. O perigo é que o governo prefira o caminho fácil, mas frustrante, do populismo a uma política autêntica de transformação social.

¿ Qual seria um ideário moderno para um partido de esquerda no Brasil?

¿ Caio Prado Júnior ensinou que a política socialista é aquela que dá solução aos problemas concretos do povo em cada momento da sua história. Hoje, socialismo no Brasil quer dizer terra, trabalho, teto, educação e saúde. Por outro lado, Santo Tomás (para equilibrar as citações), dizia: ¿Quem quer os fins busca os meios adequados¿. Um partido de esquerda moderno no Brasil hoje deve esclarecer a população e levá-la a lutar por medidas concretas para seus problemas. A incapacidade do governo de cumprir as promessas de mudança social parece indicar que o capitalismo brasileiro é hermético a qualquer de transformação que possa beneficiar o conjunto da população.

¿ Que saídas tem o PT?

¿ O PT precisa passar por um profundo processo de reestruturação política e organizativa. A proposta inicial era criar um partido em que as bases mandassem. No processo, isto se perdeu. Os núcleos estagnaram ou desapareceram. As instâncias intermediárias e superiores adquiriram um poder que asfixia o debate interno e impede a minoria de se tornar maioria, o que não é democrático. Desde o inicio, o PT decidiu atuar em duas frentes: na organização da pressão direta de massas sobre o establishment capitalista e na disputa eleitoral para ocupação de postos eletivos na estrutura do estado. O enfraquecimento da pressão popular, decorrente das profundas transformações no capitalismo mundial e brasileiro, desequilibrou essa forma de atuar, o que fez crescer, no interior do PT, a frente da disputa eleitoral em detrimento da frente de luta de massas. Com isso, introduziu-se o eleitoralismo no PT. ¿ Isso é irreversível? ¿ A possibilidade de retomar a trajetória inicial passa pela rejeição do eleitoralismo. Nesse sentido, tudo vai depender da forma pela qual Lula pretende organizar o esquema político da reeleição. Se for como o José Dirceu andou anunciando, o partido certamente ficará descaracterizado.