Título: As Farc segundo as Farc
Autor: Hugo Marques
Fonte: Jornal do Brasil, 27/03/2005, Internacional, p. A8
Porta-voz da guerrilha colombiana quer que presidente Lula medie acordo de troca de prisioneiros junto a Bogotá
De algum lugar das montanhas, o chefe da Comissão Internacional das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), Raúl Reyes, enviou ao Jornal do Brasil um longo e-mail, depois de muita negociação com intermediários no Brasil. Principal porta-voz da guerrilha, Reyes descreve os pontos de vista da organização. Alguns são questionáveis, como o nível do apoio popular às operações, o domínio territorial na atualidade, a associação negada com o narcotráfico e com o traficante brasileiro Fernandinho Beira-Mar (que era protegido por uma coluna das Farc). Reyes manda ainda uma mensagem ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tem encontro com o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, este mês. O grupo quer a intermediação do Brasil num acordo de troca de presos e uma saída para a crise na Colômbia ''que não seja a guerra''. Eis os principais trechos da entrevista:
DEFINIÇÃO
- Somos um Exército revolucionário, inspirado em Simón Bolívar, presente em todo o território nacional, com simpatia e apoio da população, integrado por camponeses, operários, estudantes, sacerdotes, índios e afro-descendentes. Nossas armas e bandeiras são uma alternativa real de poder. Temos requisitos políticos para sermos reconhecidos internacionalmente como Força Beligerante.
PRINCIPAL DERROTA
- Sofremos um revés em 1966, quando perdemos 70% dos homens e das armas. Isto foi depois da Segunda Conferência das Farc. Só nos recuperamos na Quinta Conferência.
CONTROLE DO TERRITÓRIO
- Estamos em todo o país. Incidimos na vida social, política e cultural. Em inúmeros municípios, a população em vez de se apoiar no juiz, na polícia e nas autoridades, procura as Farc porque sabe que ela ajuda a solucionar dificuldades pelo diálogo.
MINISTÉRIO PARA QUEIXAS
- Quando dos diálogos com o presidente Andrés Pastrana, administramos os 42 mil km2 que foram desmilitarizados. Organizamos um Ministério da Justiça, o Escritório de Queixas e Reclamações que, junto a outras atividades, foi bem-sucedido. Se esse processo não tivesse sido ferido pelo governo e pelo Império da América do Norte, com certeza a Colômbia não padeceria a guerra de hoje.
RELAÇÕES COM PARTIDOS
- Contamos com a simpatia e apoio de partidos e movimentos políticos da América Latina e do mundo. Eles entendem nossa luta e as razões para usar as armas. Quem esquece o genocídio contra a União Patriótica, os 3 milhões de enxotados em nosso país? Para evitar que o massacre se repita, temos organizado o Partido Comunista Clandestino e o Movimento Bolivariano pela Nova Colômbia, para que o povo lute, na clandestinidade.
DINHEIRO PARA O PT
- Nunca demos dinheiro a partido de qualquer país nem patrocinamos campanhas eleitorais no estrangeiro. A denúncia de uma revista do Brasil é infeliz, insana, ofende a honra da verdade, da ética jornalística e o direito do povo brasileiro de estar bem informado. Parece parte de uma campanha desesperada de quem vê que o povo latino luta para abrir novos espaços democráticos e pode ser o ator principal de um processo de transformações que lhe gere progresso, bem-estar e paz.
O GOVERNO LULA
- Seguimos a trajetória de vários governos eleitos no entendimento de que ajudarão a resolver os graves problemas de que o povo padece. Esses processos precisam de consciência política baseada no conhecimento da nossa história comum, da organização popular e do trabalho pela unidade estratégica. Corresponde ao povo brasileiro, a suas organizações e partidos, avaliar a gestão de seu presidente. Nós, das Farc, desejamos que seu governo alcance, como disse Bolívar, o maior grau de felicidade.
AOS PRESIDENTES
- Lutamos pela paz com justiça social na Colômbia, com vontade política para a solução dialogada. Mantemos a proposta da desmilitarização dos municípios Pradera e Florida no Departamento do Valle del Cauca para fazer e assinar com o governo a troca dos presos em poder das duas partes. O governo receberia tanto os presos de guerra quanto os políticos em troca de nossas guerrilheiras e guerrilheiros presos, incluídos Sônia, Simón Trinidad e Ricardo.
PRESOS DAS FARC
- Temos comandos do Exército e da Polícia, 12 deputados estaduais de Valle del Cauca, congressistas, o ex-governador Alan Jara, o ex-ministro de Estado Fernando Araujo, a ex-candidata presidencial Ingrid Betancourt e sua assessora Clara Rojas. Estrangeiros, temos três agentes da CIA. Queremos responder ao clamor nacional e esperamos que o governo tenha igual sensibilidade. Temos dito que a facilitação pode surgir pelo apoio que países amigos nos possam dar.
LULA MEDIADOR
- Propomos a criação de um grupo de países amigos, incluído o Brasil, dada sua vontade de ajudar, para facilitar a busca de uma saída à crise que não seja a guerra, já que esta não soluciona os problemas do povo. Pelo contrário, os agrava. Também queremos que a ONU nos receba oficialmente para poder expor nossa opinião sobre o conflito, assim como propostas concretas para sua solução.
COLÔMBIA X COLÔMBIA
- Não fazemos a guerra pela guerra, mas pelas circunstâncias políticas nos vimos na necessidade de enfrentar armas com armas. Nos impõem os que têm se apropriado do poder e seu maior suporte é a ingerência dos EUA. Hoje não existe governo colombiano porque a oligarquia faz o que diz a Casa Branca, vale dizer, o Fundo Monetário Internacional, as transnacionais e seu aliado, o Pentágono. Vamos para 41 anos enfrentando o extermínio. E repetimos que os problemas da Colômbia se resolvem por caminhos distintos à guerra.
AS FARC E O MST
- Com movimentos de outros países temos elementos em comum como a luta pela reforma agrária, pela educação, a melhoria tecnológica, assistência técnica e o apoio financeiro para a produção agropecuária e a investigação científica, a promoção integral dos povos indígenas, a luta contra a Alca e a dívida externa e o neoliberalismo. Temos tido a chance de cumprimentar em encontros internacionais lideranças desses movimentos com conhecimentos que admiramos. Estudamos as experiências de outras lutas para fortalecer a nossa. Possivelmente eles farão algo similar. Tudo porque em cada país o povo faz a própria vivência rumo a uma América Latina unida e soberana.
SUSTENTO
- Nas Farc aprovamos duas leis. Uma criou um ''Imposto para a Paz'', segundo o qual toda pessoa com capital a partir de US$ 1 milhão deve aportar às Farc 10%. Se tentar sonegar, o índice sobe. A outra é a lei ''Anti-corrupção'', segundo a qual quem pegar indevidamente recursos do erário vai prestar contas. Recebemos apoio voluntário de pequenos e médios empresários, comerciantes, fazendeiros, assim como doações de pessoas de poucos recursos. Essas últimas têm significado especial. E produzimos, pois as guerrilheiras e guerrilheiros também passam a estudar e trabalhar a terra. Ou seja, temos planos para a auto-sustentação.
AS FARC E O NARCOTRÁFICO
- Em 1984, chegou na Colômbia o ex-diretor da CIA Lewis Tamb, como embaixador dos ianques. Um de seus ''bons ofícios'' consistiu em buscar um pretexto para atacar as Farc através de uma das campanhas mais sujas já vistas, golpeando nossa imagem e prestígio de forma psicológica, sem trégua e mundial, impedindo que muitos conheçam realmente o que somos. O narcotráfico é um problema do Estado, movimenta muito dinheiro e dele participam pessoas importantes e paramilitares, coisa sabida pelas autoridades, pela Inteligência daqui e de fora. Hoje o governo legaliza as imensas riquezas obtidas através desse negócio ilícito e ilegal, cobrindo com vergonhosa impunidade os paramilitares responsáveis de crimes de lesa humanidade e preparando a reeleição de Uribe.
BEIRA-MAR
- As armas são consideradas o primeiro rubro da economia mundial, cuja produção está sob controle militar e a venda é regulada por políticas internacionais via agentes credenciados pelos países com multinacionais no negócio. Que se conheça, Beira-Mar não tem sido mencionado como ligado à multinacional qualquer e essas não têm informado sobre negócios com Beira-Mar. Dá para entender que esse senhor ande por aí vendendo ou trocando armas por droga para as multinacionais?
CESSAR O CONFLITO
- Temos uma plataforma para um governo de reconstrução e reconciliação nacional para alcançar a paz com justiça social. É fundamental termos vontade política para sentar e dialogar com um governo que reconheça o caráter político de mais de 40 anos de luta. Propomos isto sempre e seguimos insistindo nessa solução difícil. Se houver acordo, deve ser ratificado pelo povo via mecanismo idôneo, como uma constituinte. Este seria um primeiro passo para solucionar as causas do conflito.
FUMIGAÇÃO DA COCA
- O objetivo não é acabar com a planta da coca e sim enxotar a população para que as multinacionais americanas atuem nessas ricas regiões. O glifosato, veneno proibido nos EUA, reforçado e vendido pela Monsanto, arrasa plantações de café, cana, mandioca, milho, banana, arroz, tudo. Mata gado, aves, peixes e gera doenças desconhecidas, atingindo mais mulheres grávidas e crianças. Muitas têm morrido. Com a guerra química, chegou o terror paramilitar do Estado, assassinando pessoas indicadas pela Inteligência. Os verdugos lhes injetavam glifosato nas artérias diante de moradores para que presenciassem o suplício dos amigos.