Título: O direito de ir e vir
Autor: Eduardo Suplicy
Fonte: Jornal do Brasil, 27/03/2005, Outras Opiniões, p. A13

O direito de ir e vir é próprio da natureza dos seres vivos e faz parte da mais remota história da humanidade. O homem se espalhou sobre a Terra procurando novos horizontes, lugares onde pudesse se adaptar melhor, com mais alimentação e proteção natural para viver.

Agora, no século XXI, precisamos ainda fazer uma reflexão sobre a questão da imigração e seus desdobramentos, nem sempre felizes para o homem que busca, mesmo que tenha partido apenas com um sonho na cabeça, melhorar o padrão de sua vida e de sua família. Os impedimentos são tão grandes e a travessia tão penosa que volta e meia temos notícias dando conta da morte de pessoas que partiram em busca da esperança mas terminaram desidratadas até a última gota no deserto. As alegações para esse impedimento são as mais variadas: prevenção ao terrorismo, reserva de mão-de-obra local, falta de qualificação, etc.

A coalizão contra o terrorismo não passa apenas pelas armas e bombas, ou pelo uso da violência contra a violência. A evolução do homem e a consolidação das estruturas políticas e jurídicas nos ensinam que uma das formas mais efetivas de se combater o terrorismo é pela união dos esforços para erradicar a pobreza ou diminuí-la, por meio de melhor distribuição de renda e de riqueza, aliada à democracia. Combater a causa é a melhor forma de fazer sustar o efeito. Melhoram-se as condições de vida, permitindo a livre circulação e o direito de estabelecimento das pessoas, sem os limites rígidos das fronteiras - o que lhes é arbitrariamente vetado pela lógica inconfessável de interesses menores, ou por uma percepção que não é a mais adequada ao interesse maior de cada nação e de seu povo.

Quando se fala em abertura comercial e em livre comércio, é natural pensar não apenas da livre circulação de bens, serviços e capitais, mas de seres humanos, objetivo de qualquer projeto baseado em desenvolvimento sustentado e liberdade política e econômica.

A livre circulação das pessoas, direito consagrado pela Constituição no âmbito interno, é algo que vem avançando nas negociações internacionais que visavam eminentemente às trocas do comércio. A conclusão é muito clara: todos saem ganhando. Quando há livre movimentação de mão-de-obra, viabilizam-se mecanismos para a desconcentração de renda, que continua a ser o grande problema de nosso tempo, de cujas raízes, profundas desde nossa formação colonial, ainda não nos libertamos. Não podemos conceber o discurso do livre mercado apenas por seu lado usuário de bens e de capitais, ignorando a maior das riquezas que é aquela redentora do homem: sua força de trabalho.

A melhor distribuição de renda e de riqueza é fundamental para o equilíbrio social. A União Européia é exemplo disso, e os históricos bolsões de pobreza que existiam no limiar dos anos 1960, hoje fazem parte do passado em uma Europa com alto nível de desenvolvimento social. No âmbito do Mercosul, desde as primeiras negociações do Tratado de Assunção, de 26 de março de 1991, buscou-se o compromisso do espaço integrado, onde as pessoas pudessem circular livremente entre os nossos países. Embora ainda não tenhamos chegado a um verdadeiro Mercado Comum, há avanços nesse sentido. Aqui as pessoas podem circular apenas com suas carteiras de identidade, como se estivessem no seu país. Mais do que isso, já está em vigor protocolo de livre circulação de trabalhadores transfronteiriços, permitindo que a mão-de-obra se movimente livremente em regiões previamente determinadas.

Por isso preocupa a notícia desta semana, de que o Paraguai pretende expulsar os brasiguaios de seus territórios, de forma indiscriminada. A primeira informação que temos é assustadora, por se tratar de verdadeira deportação em massa, o que contrasta com o momento histórico que vivemos. O drama dos imigrantes está muito presente na sociedade brasileira. A novela de Glória Perez, ''América'', da TV Globo, com ousadia e competência, retrata o processo de desilusão, de sofrimento e, por vezes, de privações pelo qual passam os imigrantes.

Devemos exortar as autoridades paraguaias para que repensem essa medida desnecessária em relação aos brasiguaios. Soluções de força não resolvem, mas agravam problemas sociais. O atual estágio de desenvolvimento do Mercosul não permite retrocesso. Formamos um bloco de nações que consagra a cláusula democrática, base da relação entre Estados, conforme manda o Protocolo de Ushuaia. A mesma República Paraguaia que reivindica e obtém a instalação do Tribunal Arbitral de Revisão do Mercosul em Assunção, seguramente não irá resvalar para medidas arbitrárias como a deportação de brasileiros que vivem lá. Salvo melhor juízo, quer-se avançar na evolução das garantias sociais, políticas e econômicas. E o Paraguai não se dobrará ao caminho inverso da história.