Título: O motorista pede um aparte
Autor: Villas-Bôas Corrêa
Fonte: Jornal do Brasil, 30/03/2005, Outras Opiniões, p. A11
Antes que a pausa de silêncio seja interrompida pelo previsível estampido da decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), derrubando a polêmica, e esta sim, surpreendente resolução da Justiça do Rio, suspendendo o pagamento de cerca de seis milhões de multas por infrações ao Código de Trânsito Brasileiro, não é impertinente nem descabido que também seja ouvida a voz dos motoristas. Afinal, é quem terá que pagar as multas escorchantes, se o recurso do Detran merecer a acolhida do STJ ou soltar os foguetes se a roleta premiá-lo com a impunidade. Certamente que não é por aí que me esgueiro para remexer com a colher retorcida a encaroçada papa dos equívocos. Claro, que a impunidade mistura na panela da injustiça os imprudentes, que arriscam a própria vida e a dos outros no desatino de bêbados em louca disparada, desrespeitando sinais, ultrapassando nas curvas e lombadas até o acidente, em geral mais um no prontuário do alucinado, com a imensa maioria do motorista normal, responsável e consciente, o grande injustiçado pela bagunça oficial e a omissão do governo. Do atual, falastrão e enganador, com dois anos e três meses de paralisia.
Tenho autoridade para depor, com carteira de motorista desde 1949, número insignificante de infrações, nenhum acidente e prática nas cidades e estradas de vários países. E os 30 anos de idas e vindas à Nova Friburgo, para os fins de semana com a família na casa em Muri. Sou do tempo em que dirigir pelas estradas tranqüilas, nem sempre em bom estado, antecipava o desligamento com as preocupações profissionais e relaxava as tensões da vida na capital.
O inchaço doentio das cidades tudo mudou. A começar pela cuca governamental, em todos os níveis. A vulgarização do helicóptero como meio de transporte para curtas e médias distâncias buliu com os miolos e mudou os hábitos dos governantes. Não se tem notícia de pernoite de governador em qualquer município nas últimas décadas. Nem em campanha eleitoral. Suas excelências pousam em qualquer campo, com a barulheira e a poeira dos helicópteros de último tipo. Saltam, sacodem o pó da roupa, abraçam os anfitriões e, de olho no relógio, chispam nos carros oficiais para cumprir o programa às carreiras. Em questão de horas liquidam a fatura e escapam, deixando o pacote de promessas jamais cumpridas.
A estrada ficou entregue à sorte madrasta. E o relacionamento entre o Detran, da chefia aos guardas e os motoristas foi azedando, como uva esquecida fora da geladeira. Verdade que nunca foram de afagos e paparicos. Mas, o recíproco rancor é recente. E compreensível. O motorista de qualquer tipo de veículo, do caminhoneiro profissional ao amador, purga ao volante a tortura digna dos especialistas em disponibilidade dos Doi-Codis.
Na forma do costume, o governo é primeiro da lista dos responsáveis pelo recorde de acidentes, com mortos e feridos, pela malha rodoviária em pandarecos. São 57 mil quilômetros de rodovias federais, cerca de dois terços em estado de calamidade. O governo do presidente Lula, mesmo com o desconto da herança maldita, contribui com a sua cota de absoluta insensibilidade, braços cruzados na inércia cúmplice, enquanto obedecia às ordens do Fundo Monetário Internacional (FMI), o parceiro cuja ajuda acaba de dispensar, como criança levada que se livra do castigo prometendo obediência e bom comportamento.
Falta-lhe autoridade para multar em massa motoristas que submete à humilhação da sua desídia, com a cobertura do glacê da burrice, da demagogia que se espalha, como praga, pelas rodovias entregues aos interesses eleitoreiros dos donos do poder.
Do Rio a Nova Friburgo, para ficar no exemplo que conheço, são 12, uma dúzia de controles eletrônicos de velocidade, muitos fincados sem qualquer critério, para atender ao pedido do manda-chuva local, na dança frenética e desvairada que salta do limite de 40 km para 60, 80, 100 e 110. Em Cachoeira de Macacu, a birutice esmera-se no requinte da franquia da via expressa à ocupação de um dos lados por lojas, casas, barracos e um supermercado que fecha metade com o estacionamento de caminhões. Além de dezena de quebra-molas, alguns separados por poucos metros.
Se o perdão de multas premia a impunidade, que punição merece o governo?