O Estado de São Paulo, n. 46551, 31/03/2021. Política. p. A10

 

 

 

 

Deputado Propõe dar a Bolsonaro poder 'de guerra'

 


Projeto de Vitor Hugo, ex-líder do governo, autoriza presidente a intervir nos Estados e derrubar lockdowns; medida preocupa STF

 

Camila Turtelli/ BRASÍLIA 

 

No mesmo dia em que o governo demitiu a cúpula das Forças Armadas, aliados na Câmara tentaram avançar ontem um projeto para ampliar os poderes do presidente Jair Bolsonaro. A intenção é permitir ao chefe do Executivo adotar medidas só autorizadas em situações de guerra, tendo a pandemia de covid19 como justificativa. A proposta, caso aprovada, abriria caminho, por exemplo, para Bolsonaro intervir nos Estados e derrubar restrições impostas por governadores, como lockdowns.

O pedido para o projeto ser votado em regime de urgência foi apresentado na reunião em que os líderes da Casa definem o que será analisado pelo plenário. A proposta partiu do líder do PSL, Major Vitor Hugo (GO), um dos parlamentares mais próximos de Bolsonaro, que costuma frequentar os palácios da Alvorada e do Planalto. O deputado ocupou o cargo de líder do governo na Câmara até o ano passado. A sugestão de dar prioridade à medida, porém, não teve apoio.

O projeto prevê o uso do instituto da Mobilização Nacional, mecanismo previsto na Constituição em casos de o País entrar em guerra, no enfrentamento da pandemia. O dispositivo dá poder ao presidente para, por exemplo, intervir nos processos produtivos – industrial ou agrícola –, requisitar a ocupação de bens e serviços e a convocação de civis e militares para atuarem no combate à crise. Segundo deputados e advogados ouvidos pela reportagem, o texto abre espaço para que o presidente assuma o controle das polícias militares estaduais.

"Na decretação da Mobilização Nacional, o chefe do Poder Executivo designará o órgão da administração pública responsável pela coordenação dos esforços e especificará o espaço geográfico do território nacional em que será realizada e as medidas necessárias à sua execução", diz trecho do projeto apresentado por Vitor Hugo.

Bolsonaro poderia, assim, definir o território nacional como o "espaço geográfico" citado no texto e passar por cima de decisões de governadores, que adotaram medidas restritivas para evitar a propagação do novo coronavírus, como o fechamento de comércio e escolas. O presidente é crítico a essas ações e chegou a recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubar toques de recolher impostos na Bahia, no Distrito Federal e no Rio Grande do Sul. O ministro Marco Aurélio Mello, porém, rejeitou o pedido.

"A Constituição não fala que (a instituição da Mobilização Nacional) é para guerra. Fala que pode ser usada para resolver um problema de grandes proporções", afirmou Vitor Hugo ao Estadão/broadcast. "Há a possibilidade de ser utilizado com a pandemia, mas tudo com a aprovação do Congresso Nacional." Mesmo no caso de o projeto ser aprovado, Bolsonaro ainda teria de pedir autorização do Legislativo para acionar a Mobilização Nacional. Para isso, é preciso maioria absoluta do Congresso.

Durante a reunião com os demais líderes da Câmara, não houve apoio ao projeto de Vitor Hugo. No entanto, um pedido de urgência para colocar a medida como prioridade nas votações da Casa ganhou a assinatura do líder do bloco que reúne os partidos do Centrão, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB). O grupo inclui 14 siglas, que somam 354 deputados. Procurado ontem, Motta não retornou aos contatos da reportagem.

 

Preocupação. Segundo o Estadão apurou, o projeto causou preocupações no presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, que avalia uma possível violação da Constituição. Após a tentativa de Vitor Hugo de colocar a proposta em votação, deputados também criticaram a medida.

"Além de inadmissível é absurdo e totalmente fora de época", disse o líder do MDB na Câmara, Isnaldo Bulhões (AL). Segundo eles, os líderes não chegaram nem a discutir o pedido de Vitor Hugo durante a reunião.

O líder do Cidadania, Alex Manente (SP), disse ser contra qualquer modificação da lei da Mobilização Nacional e aponta a possibilidade de o controle das PMS passarem para o presidente. "A ampliação pode dar margem à interpretação de utilização por força da legislação dos militares estaduais pelo presidente da República", disse Manente. "O deputado Vitor Hugo quer, nesse momento, ampliar esse poder com a crise sanitária que o Brasil vive, dando possibilidades inclusive e margem de interpretação para que o presidente possa utilizar dessa lei para avançar em qualquer processo de golpe de estado. Não permitiremos", disse.

Em nota, Vitor Hugo disse que seu projeto é "fundamental para reforço da logística nacional e garante que nenhum direito ou garantia individual é afastado em caso de acionamento da Mobilização Nacional". Ele afirmou ainda que o projeto já vinha sendo elaborado. "O deputado esclarece que este projeto já estava sendo elaborado há um tempo e não tem nenhum tipo de relação com as últimas mudanças feitas em cargos do Poder Executivo", afirmou. / COLABORARAM RAFAEL MORAES MOURA e ANDRÉ SHALDERS

 

Projeto

"O deputado Vitor Hugo quer, nesse momento, ampliar esse poder com a crise sanitária que o Brasil vive, dando possibilidades inclusive e margem de interpretação para que o presidente possa utilizar dessa lei para avançar em qualquer processo de golpe de estado. Não permitiremos."

Alex Manente (SP)

DEPUTADO E LÍDER DO CIDADANIA NA CÂMARA

 

 

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Para deputados do Centrão, é preciso manter 'vigilância'


Vice-presidente da Câmara defende ida do general Braga Netto ao Congresso para explicar mudanças nas Forças

 

André Shalders

 

As demissões do ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva e dos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica criaram um clima de apreensão no Centrão, base de apoio do presidente Jair Bolsonaro no Congresso. Na avaliação de deputados, é preciso manter a "vigilância" diante das mudanças abruptas promovidas no comando das Forças Armadas e da motivação do presidente para fazê-las.

Generais teriam se recusado a referendar posições políticas do governo e a confrontar os demais Poderes nas vezes em que contrariaram Bolsonaro. Azevedo e Silva foi demitido do cargo pelo presidente em uma reunião que durou apenas alguns minutos, na tarde de anteontem. "Preservei as Forças Armadas como instituições de Estado", escreveu ele ao deixar o governo. Na manhã de ontem, foi a vez de Edson Leal Pujol (Exército), Ilques Barbosa Júnior (Marinha) e Antônio Carlos Bermudez (Aeronáutica) serem demitidos em uma reunião com o novo ministro da Defesa, Walter Braga Netto.

Embora os comandantes das três Forças já cogitassem entregar os cargos, eles não puderam falar sobre o assunto: Braga Netto abriu o encontro anunciando a demissão dos três. Segundo disse o novo ministro, as mudanças foram necessárias para garantir o "realinhamento" das Forças ao governo. É a primeira vez que o comando dos três ramos das Forças Armadas é trocado simultaneamente.

"É um movimento sem precedentes na história, o que faz com que todo mundo fique receoso. Mas eu sou daqueles que confiam na maturidade das nossa democracia, no compromisso das Forças Armadas com o regime democrático e com a Constituição. Ficamos receosos, existe vigilância", disse o vice-presidente da Câmara, deputado Marcelo Ramos (PL-AM).

O deputado defendeu a convocação do general Braga Netto para que ele explique ao Congresso o motivo das trocas no comando militar. "Se não há nada de extraordinário (na troca), acho que seria de bom tom, para passar uma mensagem de estabilidade e retirar esse receio que efetivamente existe, o general esclarecer as mudanças", afirmou Ramos.

Um requerimento convocando o novo ministro da Defesa foi apresentado ontem pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-ap). O texto ainda precisa ser aprovado.

"Primeiro, ficou muito claro que o ex-ministro da Defesa (Fernando Azevedo e Silva) eo comando das Forças Armadas estavam muito alinhados com o estado democrático de direito (...). Eu acho que essa saída em massa mostra um descontentamento, ou um sinal de alerta, sobre algum pedido antirrepublicano ou inconstitucional (feito pelo presidente)", disse o deputado Fausto Pinato (PP-SP).

 

'Natural'. A preocupação, no entanto, não alcança todos os políticos do Centrão. Uma parte do bloco de partidos considera que as mudanças estão dentro da normalidade e não comprometem as Forças Armadas, mesmo que sejam inéditas. "A independência (do Exército, da Marinha e da Aeronáutica) está preservada", declarou o presidente de um dos principais partidos do grupo, sob anonimato.

"É natural (a mudança). Qualquer pasta que está inserida dentro do governo cabe ao presidente da República avaliar se é passível de mudança. (Substituições) Nessa área da Defesa já aconteceram em outros governos", disse o líder da bancada do PL na Câmara, deputado Wellington Roberto (PB).

"Eu, que estou aqui há 25 anos, já vi, em diversos governos, mudanças na Defesa. No governo Lula mesmo, o José Alencar, que era o vice-presidente, acumulou o cargo de ministro da Defesa", minimizou o parlamentar.

 

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