Título: Descaramento explicável
Autor: Antonio Sepulveda
Fonte: Jornal do Brasil, 30/03/2005, Outras Opiniões, p. A11

Alguns leitores nos escrevem a pedir uma diatribe repassada de indignação sobre o descaro da falácia com a qual o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, tentou em vão justificar seus atos de nepotismo explícito. O controverso parlamentar, com a impudência de um fauno, justificou a contratação de uma chusma de parentes para cargos comissionados nos poderes executivo e legislativo, baseando-se na única e escassa premissa de que a parentela ocupante das rendosas sinecuras tem, todos eles, diplomas universitários.

O filhote José Maurício Cavalcanti, por exemplo, ''um economista que defendeu teses'', mas que vive de prebendas na Câmara por obra e graça de sua herança genética, vai assumir agora, por indicação do papai extremoso, a superintendência do Ministério da Agricultura de Pernambuco. Neste caso, o manheiro Severino nem vai precisar lançar mão do substancial aumento da verba de gabinete recentemente concedido aos legisladores; verba esta que, afinal de contas, mostrou ter um propósito bem definido.

Por incrível que pareça, em se tratando do tragicamente caricato Severino, nada disso nos causa surpresa nem indignação. É preciso compreender o atavismo mórbido que povoa as distorcidas cabecinhas dos nossos Severinos. Um Severino desses, nato e hereditário, realmente acredita, com profunda pureza d'alma, que não está fazendo nada de errado. Convicto de ser um consumado dialeta, ele entende que a sociedade consciente e a imprensa séria aprovam o sofisma do ''curso superior'' e aplaudem de pé o desempenho das criaturas oriundas da árvore genealógica dos Severinos, sem as quais a máquina do poder estaria entregue a uma súcia de funcionários incapazes, relapsos e inconfiáveis. E por quê? Na lógica estropiada do deputado pernambucano, a opinião pública e a mídia lhe haviam censurado a condição de apedeuta; então, ele está a compensar esta deficiência ao contratar a parentalha diligente e erudita.

Nelson Rodrigues, numa de suas crônicas deliciosas, descreveu-nos o que ele chamava de revolução dos idiotas. ''Antigamente, o silêncio era dos imbecis; hoje, são os melhores que emudecem. O grito, a ênfase, o gesto, o punho cerrado, estão com os idiotas de ambos os sexos''. O idiota era apenas idiota e como tal se comportava. Não tinha ilusões. Um dia, descobriu que era maioria e sentiu a embriaguez da onipotência numérica. E então aquele sujeito que se limitava a babar na gravata passou a existir socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente etc. Segundo o insuperável dramaturgo, ''houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas. Criou-se uma situação realmente trágica: ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina''.

Severino é o produto acabado do descaso crônico com o sistema educacional. Tivesse o Brasil, em ponderável maioria, um povo esclarecido e cônscio dos verdadeiros objetivos nacionais, os Severinos delirantes sequer teriam a ousadia de aspirar a um cargo público, pela simples razão de que não teriam quem representar. Infelizmente, a realidade é bem outra, e, numa democracia autêntica, a mediocridade também deve dispor de oportunidades iguais para eleger seus representantes. A dura verdade é que Severino se orgulha do nepotismo que pratica, e o eleitor brasílico sempre encontra um motivo que o justifica e absolve. Ainda vão nascer milhões de Severinos que elegerão outros Severinos antes de o país reunir condições educacionais, sociais e culturais de tomar a trilha da seriedade e da honestidade de propósitos. Não duvidemos: Severino será gloriosamente reeleito em 2006, e dirigirá a nós, minoria insignificante, o superior olhar chamejante do escárnio.