Valor Econômico, n. 5237, 28/04/2021. Política, p. A10

 

Ciro Nogueira deu início à “Ponte para o Futuro II”

Maria Cristina Fernandes

28/04/2021

 

 

CPI da pandemia mostra a corrosão na base do governo e o jogo duplo que a enseja

No primeiro dia de seu funcionamento, a CPI da pandemia já mostrou a corrosão na base do governo e o jogo duplo que a enseja. A corrosão ficou escancarada pelo senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) ao se queixar da “ingratidão” do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que manteve a instalação da comissão, a despeito da liminar que barrava a indicação do senador Renan Calheiros (MDB-AL).

Obtida a pedido da deputada Carla Zambelli (PSL-SP) junto ao juiz federal da 1ª Região, Charles Frazão, a liminar foi derrubada pelo presidente interino do Tribunal Regional Federal, Francisco Betti, sob o argumento de que a escolha do relator é uma prerrogativa do presidente da CPI.

Com o braço esquerdo na tipoia, em decorrência de um acidente com um quadriciclo no Ceará, o filho do presidente Jair Bolsonaro ainda disse que Pacheco, eleito para a Mesa do Senado com o apoio do governo, foi “irresponsável” ao autorizar o início dos trabalhos na comissão antes do arrefecimento da pandemia.

Voltou-se ainda contra o senador Eduardo Braga (MDB-AM), até então considerado o preferido do governo para a relatoria da comissão, anunciando a retirada do seu partido do bloco partidário integrado pelo MDB por não ter sido consultado sobre os nomes por ele indicados para a CPI.

O jogo duplo foi protagonizado pelo senador Ciro Nogueira (PP-PI). Um dos maiores aliados do presidente da República na Casa, o senador protagonizou o primeiro embate dos trabalhos de instalação presididos pelo senador Otto Alencar (PSD-BA), decano do colegiado convocado para a missão. Questionou a participação simultânea de colegas, em mais de uma CPI, o que é vedado pelo regimento do Senado. O questionamento não provocou a troca de nenhum dos indicados, mas levou os senadores a abrirem mão das outras comissões de inquérito de que participam, possibilitando, no mínimo, um rearranjo na CPI das “fake news”, comissão da qual o núcleo duro do bolsonarismo é alvo.

Ciro manteve-se combativo ao longo das cinco horas de sessão, questionando, inclusive, se o senador Renan Calheiros (MDB-AL) teria condições de ser um “meio relator”, uma vez que já se declarara impedido de relatar questionamentos relativos ao governador de Alagoas, Renan Filho (MDB).

O senador do PP, porém, não se furtou a se auto-proclamar como eleitor do senador Omar Aziz (PSD-AM) quando, apurada a disputa pela presidência da comissão, o candidato governista, o senador Eduardo Girão (Podemos-CE), apareceu com três votos. Como há quatro senadores assumidamente governistas na comissão - além de Ciro Nogueira e Girão, Marcos Rogério (DEM-RO) e Jorginho Mello (PL-SC) - o celular do senador piauiense acabou inundado de mensagens sobre seu voto, o que o levou a revelá-lo de viva voz.

Disse que havia prometido votar em Aziz, sob o compromisso de que este seria um presidente imparcial, e assim o fez. Como Aziz seria eleito mesmo sem seu voto, o gesto de Ciro e sua determinação em expô-lo, revelam a “ponte para o futuro” que o presidente do PP já começou a construir para que possa fazer a travessia quando esta CPI chegar ao fim com as vísceras deste governo expostas à luz do sol.

“Ponte para o Futuro” foi o nome dado ao programa com o qual o MDB do então vice-presidente Michel Temer, construiu as bases de apoio dentro e fora do Congresso, ao seu nome, pavimentando o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Ciro Nogueira foi participante ativo deste processo, negociando com Dilma e Temer ao mesmo tempo para salvaguardar um cenário benigno para seu partido e para si mesmo sob quaisquer desfechos.

A travessia da ponte leva Ciro Nogueira para o lugar de onde ele nunca saiu. O senador integrou a base de todos os governos desde que chegou ao Congresso, primeiro no PFL, depois no PP: Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro. Manteve-se, até poucos meses atrás, aliado tanto de Bolsonaro quanto do governador do Piauí, Wellington Dias (PT). Rompeu em agosto de 2020 e declarou-se pré-candidato ao governo do Estado, mas manteve muitos de seus aliados na administração de Dias.

Ciro se manterá ao lado de Bolsonaro enquanto este for o presidente e, principalmente, tiver tinta na caneta. O papel a ser desempenhado pelo senador foi escancarado por Renan. O relator expôs um plano de ação impecável que procuradores federais apelidaram de “A lista que [Augusto] Aras não fez” e não deixou dúvidas sobre o quão enrascado Bolsonaro estará: “O erro não é atenuante, é a própria tradução da morte. O país tem o direito de saber quem contribuiu para as milhares de mortes e eles devem ser punidos imediata e emblematicamente”.

Mostrou ainda que o Congresso não é Casa de rompimentos, mas de recomposições. Extrapolou o discurso escrito e dirigiu-se a Ciro: “Para além de qualquer divergência, nenhum dos senhores é mais meu amigo quanto meu amigo é o senador Ciro Nogueira.”