Título: Em clima glauberiano
Autor: Carlos Heli de Almeida
Fonte: Jornal do Brasil, 30/03/2005, Caderno B, p. B4

Seminário de cinema tem manifesto poético e exibição de filme proibido de Glauber Rocha

Ao fim da cerimônia de abertura do Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, no início da noite de segunda-feira, em Salvador, o ator baiano Jackson Costa inicia um discurso em defesa do cinema pátrio que, num crescendo, assume o tom de um panfleto poético. Cabelos longos, barba e bigodes fartos, olhos injetados de paixão, mãos agitadas acompanhando cada mudança na entonação da voz, era como se Costa tivesse mandado a platéia de volta aos anos 60, das performances-protesto.

Aplaudido, o ato do artista preparou o público para a projeção de Di (1977), de Glauber Rocha (1938-1981), o delirante curta-metragem cujo nome oficial é Ninguém assistirá ao formidável enterro da tua última quimera, somente a ingratidão, aquela pantera, foi sua companheira inseparável! , banido das telas brasileiras desde 1979, no qual o diretor documenta com uma câmera de 16mm o velório e o enterro do pintor Di Cavalcanti.

- Foi muito bom ver novamente uma manifestação oswaldiana, antropofágica - diria horas mais tarde o pesquisador e ensaísta americano Robert Stam, um dos palestrantes convidados pelo evento.

A qualidade do som e da imagem da projeção (em DVD), que encheu de alegorias o telão montado no auditório da reitoria da Universidade Federal da Bahia, não era das melhores. Mas o estilo incendiário e a perplexidade de seu autor estão intactos, quase 28 anos depois de sua realização. No próprio áudio do filme, Glauber lembra que entrou no velório do pintor, realizado no Museu de Arte Moderna do Rio, sem pedir permissão ou avisar à família do artista. Logo depois do lançamento do filme, em 1979, a filha do pintor, Elizabeth Di Cavalcanti conseguiu um mandado de segurança contra a exibição de Di.

- Não pedimos a autorização da família do artista para a exibição do filme aqui. Acho que eles já estão se cansando de manter essa briga. E não haveria razão para criar caso com este evento; a projeção no seminário não é aberta ao público em geral, não é cobrado ingresso - disse Paloma Rocha, filha de Glauber, de volta do Festival Théâthres au Cinema de Bobigny , na França, que este ano prestou homenagem à obra de seu pai.

- Lá em Bobigny a gente exibiu uma cópia do filme restaurada e ampliada para 35mm, que foi um sucesso - contou Paloma.

Di ritualiza de forma alternativa o adeus de Glauber ao ''pintor do Catete''. É um funeral ''poético'', nas palavras do próprio diretor, que combina o registro da movimentação no velório e do enterro do artista com interferências dramáticas (em certo momento, o ator Joel Barcelos assume uma das alças do caixão), recortes de jornais que noticiam o acontecimento e a indignação da família do morto diante da filmagem. O filme atenta para o fato de poucos amigos terem participado da última homenagem ao pintor. E não se cansa de mostrar a tristeza de Marina Montini, uma das musas de Di Cavalcanti, elegante em seu turbante preto e óculos escuros.

As imagens são pontuadas pela locução raivosa de Glauber que, em diferentes estilos narrativos, descreve encontros com o pintor e impressões sobre sua obra.

- É uma pena que o áudio dessa projeção aqui no seminário estivesse prejudicada. Em um dos depoimentos deixados por Glauber, que eu aproveitei no meu documentário Retrato da terra, ele diz que estava interessado em experiências com estilos narrativos, quando fez Di - explicou o cineasta Joel Pizzini.