Título: Tirem as mãos do Hospital de Base
Autor: Nelson Marins
Fonte: Jornal do Brasil, 30/03/2005, Brasília / Opinião, p. D2

Ao tomar conhecimento de que a Comissão Nacional de Residência Médica, do Ministério da Educação, descredenciou a residência de Cardiologia do Hospital de Base do DF, fiquei aturdido e traumatizado ante a truculenta decisão. Imediatamente me vieram à mente imagens caleidoscópicas do período em que, com muito orgulho, participei do seu corpo clínico.

Quando cheguei à Brasília em 1965, convidado por um dos melhores secretários de saúde que o GDF já teve, Francisco Pinheiro da Rocha, para ajudar a organizar o Pronto Socorro de Cardiologia do 1o. HDB, já portava um razoável currículo. Trazia os títulos de professor assistente de três das quatro Faculdades de Medicina até então existentes no Rio: Faculdade Nacional da Universidade do Brasil, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado da Guanabara e Faculdade Fluminense de Medicina. Não era pouco para quem se formara havia apenas sete anos.

Para minha alegria de recém chegado, aqui encontrei inúmeros ex-alunos e - agradável surpresa - várias unidades de excelência no primeiro HDB, destacando-se as de Cardiologia e Angiologia, de Cirurgia Cardiovascular, de Pediatria, de Neurologia e Neurocirurgia, e de Radiologia, com médicos, enfermeiros e outros profissionais de excelente categoria. Isto tinha uma importância crucial, posto que o regime militar já havia arrasado a Universidade de Brasília. Com a demissão em massa de um corpo docente dos mais brilhantes que se foi capaz de reunir no Brasil, resultaram conseqüências deletérias para o ensino da graduação e da residência médica. Durante muito tempo, portanto, o nosso hospital - posteriormente intitulado Hospital de Base do Distrito Federal - representou a única opção de excelência na assistência médica, no ensino de internos e residentes e na pesquisa clínica na Capital Federal e na região Centro-Oeste. Diga-se a bem da verdade, que o HBDF formou residentes oriundos praticamente de todo o Brasil.

Durante cerca de trinta anos tive o privilégio de trabalhar, aprender e ensinar numa instituição que cuidava de uma enorme quantidade de portadores das mais diversas patologias, o que significava uma oportunidade ímpar de treinamento em serviço, inclusive para mim mesmo. O Hospital de Base do DF foi o principal responsável pelo incremento do meu currículo e da projeção que alcancei como cardiologista no país e no exterior.

Com o apoio de chefes e colegas, e o entusiasmo e colaboração de residentes e internos, progressivamente ajudamos a colocar o HBDF e a medicina de Brasília no mapa da assistência e da pesquisa clínica da doença de Chagas, através de bolsas de pesquisas e projetos subvencionados pelo CNPq, publicações de trabalhos em revistas renomadas nacionais e internacionais, apresentações em congressos no Brasil e em outros países. A aprovação de um nosso trabalho apresentado no Congresso Mundial de Cardiologia em Moscou, em 1982, foi um reflexo da qualidade da produção do nosso hospital.

Lembro-me, igualmente, das reuniões internas, dos cursos de extensão universitária que organizamos ou participamos, e do treinamento da primeira turma da Unidade Coronária, na pioneira UTI do saudoso Miguel Marcondes.

O treinamento de internos e residentes nos plantões da cardiologia constituem um capítulo à parte. Num ambiente tenso, dramático - muitas vezes trágico - que lembrava MASH, antigo seriado da TV, vivemos situações hilárias, surrealistas, que se incorporaram ao folclore do Hospital: o militar prepotente que quis me prender, porque depois de declinar sua patente de coronel do Exército, perguntei-lhe irrefletidamente de que mais se queixava. Estão lembrados também do episódio ''Socorro! Polícia!''? Bons tempos.

Não pensem que a escola era sempre risonha e franca. O regime de exceção parira uma nova casta de tecnocratas e de economistas, que se encarregaram de desqualificar os médicos (e outros profissionais liberais, como os professores), aviltando-lhes os salários e não lhes dando condições mínimas para o exercício da profissão. Em todo o Brasil, substituíram os botequins de cada esquina por escolas de Medicina, com o conseqüente despreparo na formação dos profissionais. Os governos dos dois Fernandos aprofundaram esta desconstrução que, ao que tudo indica, terá na gestão do companheiro Luiz Inácio Lula da Silva a sua última pá de cal. O micro imita o macrocosmo.

De toda a minha experiência no Hospital de Base, ressalte-se a convivência democrática, respeitosa e amiga com alunos, internos, residentes, colegas. Não significa que não tivemos atritos, queixas e reclamações. Aos montes. Mas sempre procuramos resolvê-los por meio do diálogo leal e franco. Uma certeza: no Hospital de Base conquistei muitos amigos e influenciei muitas pessoas. E por elas fui conquistado e influenciado.

Como dizia Clemenceau, o Tigre, ''a guerra é um assunto muito sério para ser entregue aos generais'' e, por oportuno, merece uma paráfrase: ''a saúde é assunto muito sério para ser entregue aos médicos''... Mas também não precisam exagerar. Pelo exposto, conclamo os colegas, funcionários, residentes e usuários - daquela época e do momento presente -, que tanto se beneficiaram daquela instituição, que comigo façam coro: