Correio Brazilense, n. 20681, 06/01/2020. Política. p. 10

 

 

 

 

 

Irã abandona acordo nuclear 

ORIENTE MÉDIO | Em comunicado, Teerã se desobriga a reduzir reatores e reservas de urânio enriquecido, principal objetivo do pacto assinado em 2015. Donald Trump volta a tuitar sobre ataques, enquanto o corpo do general morto em bombardeio chegava ao território iraniano para o funeral

 

No dia seguinte às ameaças de ataques publicadas no Twitter pelo presidente norte-americano, Donald Trump, o Irã anunciou que se desobriga a limitar a produção de urânio, o mais importante ponto do acordo nuclear firmado em 2015 com as potências mundiais. Em comunicado, o governo afirmou que “a cooperação com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) será mantida”, mas, a partir de agora, o país risca do pacto o compromisso de reduzir em dois terços o número de centrífugas. Também deixa de diminuir as reservas de urânio enriquecido, estado em que o elemento químico tanto pode produzir energia elétrica quanto armas nucleares. Teerã assinala que pode retomar o acordo caso as sanções americanas sejam retiradas

Em agosto passado, Teerã já havia começado a reduzir compromissos do texto de 2015, em resposta à decisão do governo norte-americano de abandonar o acordo e voltar a estabelecer sanções contra o Irã. Porém, o presidente Hasan Rohani declarou que estava disposto a restabelecer as limitações caso Trump extinguisse as restrições econômicas retomadas por Washington.

O aviso de que o país poderá voltar a produzir grandes quantidades de urânio enriquecido segue-se às declarações do chefe da Casa Branca de que há 52 alvos no Irã passíveis de ataques, inclusive monumentos históricos. Ontem, Trump voltou a tuitar provocações, ainda nos desdobramentos do bombardeio no Iraque que matou o general iraniano Qasem Soleimani. “Os Estados Unidos acabaram de gastar US$ 2 trilhões em equipamento militar. Somos os maiores e, de longe, os MELHORES do mundo! Se o Irã atacar uma base norte-americana, ou qualquer americano, mandaremos alguns de nossos novos e belos equipamentos para lá... e sem hesitação!”.

A menção à destruição de monumentos históricos provocou a reação de Mohsen Rezai, ex-comandante em chefe dos Guardiões da Revolução e atual secretário do Conselho de Discernimento, posto-chave no sistema político iraniano. Ele ameaçou, ontem, atacar Israel e reduzir Tel Aviv e Haifa “a pó”.

“Trump, você tuitou que atacará 52 alvos no Irã?”, contestou. “Você tuitou que atacaria novamente se o Irã se vingasse? (…) Se os Estados Unidos tomarem a menor medida após a nossa resposta militar, reduziremos Tel Aviv e Haifa a pó”, reiterou no Twitter. O ministro das Relações Exteriores do Irã, Mohamad Javad Zarif, também tuitou que “atacar locais culturais é um crime de guerra”, referindo-se à Convenção de Genebra.

O chefe da diplomacia dos EUA, Mike Pompeo, afirmou que qualquer ação militar de Washington estará de acordo com a lei internacional. “Agiremos legalmente e dentro do sistema”, declarou à rede ABC. “O povo americano deve saber que todo alvo que atacaremos será um alvo legal e com uma missão única: de proteger e defender os Estados Unidos.”

Pompeo afirmou que há uma “probabilidade real” de o Irã tentar atacar as tropas americanas, depois do bombardeio orquestrado por Washington, que matou Soleimani na madrugada de sexta-feira. “Achamos que há uma probabilidade real de o Irã cometer um erro e tomar a decisão de atacar algumas de nossas forças militares no Iraque ou solados no nordeste da Síria”, afirmou Pompeo à Fox News.

 

Cortejo

As trocas de ameaças aconteceram enquanto uma maré humana tomava as ruas de Ahvaz no segundo dia de homenagens fúnebres — o primeiro em território iraniano. Colocados no teto de um caminhão florido e cobertos com uma manta representando a Cúpula da Rocha de Jerusalém, os caixões de Soleimani e de Abu Mehdi al-Mouhandis, chefe militar iraquiano pró-Irã morto no mesmo ataque, percorreram muito lentamente o centro da cidade de minoria árabe. Ahvaz é a capital do Khuzistão, uma província mártir da guerra Irã-Iraque (1980-1988), durante a qual o general começou a despontar no regime.

As autoridades declararam três dias de luto nacional. No cortejo, homens e mulheres choravam enquanto batiam no peito ao som de um canto xiita: “Você alcançou seu sonho, encontrou o imã Hussein”. Neto de Maomé, o imã Hussein é uma das figuras sagradas mais reverenciadas do xiismo, a quem os fiéis costumam se referir como o “senhor dos mártires”. Gritos de “morte à América” também eram repetidos com veemência.

“Os Estados Unidos acabaram de gastar US$ 2 trilhões em equipamento militar. Somos os maiores e, de longe, os MELHORES 

do mundo! Se o Irã atacar uma base norte-americana, ou qualquer americano, mandaremos alguns de nossos novos e belos equipamentos para lá... e sem hesitação!” Donald Trump, presidente dos EUA, no Twitter.

 

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Negociação histórica

O retorno à produção de urânio enriquecido, anunciado ontem pelo Irã, faz cair por terra um acordo histórico, firmado em 2015 depois de 23 meses de intensas negociações, das quais o Brasil participou como mediador. O documento de 100 páginas foi comemorado em todo o mundo — especialmente pelos iranianos, que sofriam os efeitos das sanções internacionais impostas desde 2006 pelo Conselho de Segurança da ONU.

Graças ao acordo, abandonado por Donald Trump em  2018, as sanções econômicas começaram a ser reduzidas em 2016, os ativos iranianos foram descongelados e o país saiu da lista dos sancionados pela Organização das Nações Unidas. Estava previsto que as restrições contra o Banco Central, o Exército, as estatais e a aviação do país fossem cancelados em três décadas. Em contrapartida, Teerã se comprometeu a reduzir a capacidade nuclear, permitir vistorias da Agência Internacional de Energia Atômica e não acumular urânio enriquecido.

Curiosamente, o programa nuclear iraniano foi lançado, nos anos 1950, com a parceria dos Estados Unidos, dentro do programa Átomos para a Paz. O governo norte-americano chegou a  fornecer, inclusive, assistência técnica para o desenvolvimento da tecnologia nuclear no país. Porém, a ideia era que o Irã a utilizasse para fins pacíficos, até porque ele é signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. Depois da Revolução de 1979, o país passou a investir em peso nos reatores de urânio, alegando objetivos médicos e de produção energética.

 

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Iraque quer saída de tropa americana

Parte do Parlamento iraquiano exigiu, ontem, a expulsão das tropas americanas do país, iniciando mais uma etapa de tensão gerada pela morte do general iraniano Qassem Soleimani por um drone americano, na última sexta-feira. O pedido não tem efeito imediato, já que seria necessário mais de um ano para efetivar a saída das tropas, mas é um indicativo de como vai se configurar o equilíbrio de forças na região. Parte do movimento que reivindica a saída das tropas é liderado pelo primeiro-ministro do Iraque, Adel Abdul Mahdi, antes um apoiador da presença norte-americana na região. Abdul Mahdi fez declaração na qual apontou a saída das tropas norte-americanas como necessária à afirmação da soberania iraquiana.

Durante a reunião do Parlamento, notou-se a ausência dos deputados curdos e a presença da maioria sunita. Muitos gritavam “não à América!” e Abdel Mahdi disse que a morte do general iraniano deixa apenas duas opções: “mandar que as tropas estrangeiras partam imediatamente ou rever seu mandato por um processo parlamentar”. Atualmente, Washington mantém cerca de 5,2 mil homens no Iraque. Na sexta-feira, após o bombardeio que matou Soleimani, Donald Trump anunciou o envio de até 3,5 mil soldados.

O chefe do Parlamento, Mohammed al-Halboussi, leu uma decisão que “obriga o governo a preservar a soberania do país, retirando seu pedido de ajuda”, dirigido à comunidade internacional para combater o Estado Islâmico. O Parlamento tem 329 parlamentares, mas apenas 168 estavam presentes. Em meio à grande confusão, enquanto alguns exigiam uma votação, Halboussi anunciou: “Decisão adotada!”.

A coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos anunciou a suspensão do treinamento das forças iraquianas e da luta contra o EI. Agora, a prioridade seria “proteger as bases iraquianas que hospedam suas tropas”.

Pelo menos duas facções dividem as opiniões no Iraque. Além daqueles que querem a saída dos americanos, há também um grupo que pede a retirada de todas as tropas estrangeiras e é contra a presença iraniana no país. Desde o assassinato de Soleimani, arquiteto da estratégia iraniana no Oriente Médio, e de Abu Mehdi al-Mouhandis, número dois da Hashd al-Shaabi, uma coalizão paramilitar pró-Irã integrada às forças de segurança, o mundo teme uma nova guerra. Os assassinatos criaram um raro consenso contra os Estados Unidos no Iraque, um país abalado por meses de revolta.

Também ontem, manifestantes antigovernamentais do Iraque protestaram contra “os dois ocupantes: Irã e Estados Unidos”, reforçando o cenário de divisão . No Parlamento, o grupo pró-iranianos exige a saída da tropa americana, enquanto outro, de apoiadores, prefere que se mantenha um contrapeso à influência de partidos e grupos armados apoiados por Teerã. Mas os manifestantes não querem nem um nem outro.

 

5.200

Total de soldados dos EUA em território iraquiano.