Correio Braziliense, n. 20614, 31/10/2019. Política, p. 6

Risco a princípios da Constituição
Thaís Moura*
31/10/2019



Mais de 380 agrotóxicos foram liberados no Brasil nos primeiros dez meses de 2019, 57 no início deste mês, segundo o Ministério da Agricultura. O número se aproxima dos 450 liberados em todo o ano passado. A quantidade de licenças liberadas reacendeu a discussão no Ministério Público do Trabalho (MPT) sobre o uso desses produtos. Em entrevista ontem ao CB Poder, parceria do Correio com a TV Brasília, a procuradora-chefe do MPT do DF e Tocantins, Valesca de Morais, afirmou que a liberação “indiscriminada” dos pesticidas fere a Constituição Federal. 

De acordo com a procuradora, com o objetivo de preservar direitos fundamentais para a saúde humana e o meio ambiente, o MPT do DF instaurou e coordena um fórum de combate aos impactos dos agrotóxicos e transgênicos. “A ideia é unir forças entre instituições que têm o mesmo objetivo de preservação, e potencializar as ações”, disse. 

Para ela, a forma como o governo federal se posiciona e age em relação aos pesticidas fere a Carta Magna. “O nome disso é falta de responsabilidade na sua atuação, porque um governo responsável é aquele que faz cumprir a lei maior de um país. E a lei maior diz que o direito à vida, à saúde e ao meio ambiente e ao trabalho equilibrado são fundamentais, porque são essenciais à vida humana”, afirmou. “Qualquer gestor, seja de que instância for, seja o presidente da República, seja um governador, seja um prefeito, e até mesmo a sociedade, tem que trazer para si essa responsabilidade de denunciar, de exigir modificações. Essa é a responsabilidade que cada gestor tem que ter.” 

Na avaliação de Valeska, é necessário maior conscientização sobre o uso de equipamentos de proteção individual por parte daqueles que trabalham diretamente com os pesticidas. “A responsabilidade do empregador não é apenas dar esses equipamentos de proteção. Essa conscientização deve ser da sociedade, das empresas e do próprio trabalhador na utilização dos equipamentos”, ressaltou a procuradora. Segundo ela, quando as empresas não cumprem as regras trabalhistas, o MPT deve investigar as causas por meio de um inquérito civil. “Verificando que ela (a empresa) descumpriu uma obrigação, que, na verdade, é uma obrigação legal, nós vamos oferecer (a possibilidade) que ela (a empresa) assine um termo de compromisso, de ajuste de conduta ou, caso não se oponha, de ajuizar uma ação civil pública”, explicou. 

Ainda de acordo com a procuradora-chefe, as notícias sobre  descumprimento das regras que regulam o trabalho com agrotóxicos cresceu nos últimos meses. “Estamos recebendo mais notícias de descumprimento, não apenas de não utilização de equipamentos de proteção individual, mas, por exemplo, de trabalhadores dizendo que a pele apareceu machucada, que está com dificuldade na respiração, e que isso, provavelmente, decorre da utilização indevida de agrotóxicos. A investigação precisa seguir os ritmos de um inquérito civil”, esclareceu. “Nossa luta é para que a substância seja utilizada sempre na quantidade correta, não afete a saúde do trabalhador, sem ser um prejuízo ao direito fundamental à vida”, acrescentou. 

Trabalho infantil 

Outro tema caro ao MPT discutido pela sociedade este ano foi o do trabalho infantil, depois de uma declaração do presidente Jair Bolsonaro, no início de julho. Em uma coletiva de imprensa, ao ser questionado sobre o tema, o presidente disse que começou a trabalhar aos oito anos. “O trabalho enobrece todo mundo e se aprende a dar valor ao dinheiro desde cedo, quando se trabalha”, afirmou, na ocasião. 

“Experiências pessoais não devem pautar políticas públicas. O trabalho infantil só traz prejuízos a nossa sociedade. Ele é o símbolo maior da miséria em nosso país. A nossa Constituição Federal é muito clara ao dizer que é proibido qualquer trabalho antes dos 16 anos de idade. E, entre 16 e 18 anos, não é permitido trabalho noturno, trabalho perigoso ou insalubre”, disse a procuradora durante o programa. 

Ela enfatizou que apenas o trabalho de aprendizagem é permitido a partir dos 14 anos. “A aprendizagem é um contrato de trabalho formal para que aquele adolescente possa, de fato, aprender um ofício. A luta do MPT é fazer com que, de fato, todas as empresas cumpram sua cota legal de aprendizes e sua responsabilidade social. É um contrato com prazo determinado de dois anos, uma forma de dar concretude à profissionalização, e é uma importante ferramenta de combate ao trabalho infantil”, explicou. 

Segundo Valesca, hoje, no DF, há cerca de 16 mil crianças entre 5 e 17 anos na condição de trabalho infantil. No entanto, ela constata que, por causa da dificuldade de mapeamento, esse número pode ser ainda maior. “Aqui no DF,  os tipos de trabalho infantil são dos mais perigosos: o doméstico e o informal”, disse. Segundo ela, esses dois tipos de trabalho infantil são os mais recorrentes no DF. No entanto, são de difícil mapeamento e constatação devido ao princípio de inviolabilidade do domicílio. “Não se pode entrar na casa de ninguém para saber se tem adolescente trabalhando lá dentro”. 

* Estagiária sob supervisão de Cláudia Dianni