Correio Brazilense, n. 20682, 07/01/2020. Mundo. p. 10

 

 

 

 

 

EUA  negam retirada; Irã idolatra general

ORIENTE MÉDIO » No cortejo fúnebre de Qasem Soleimani, em Teerã, centenas de milhares de iranianos exigem vingança contra os Estados Unidos. Washington anuncia saída de tropas do Iraque, mas recua, após Parlamento de Bagdá aprovar expulsão dos americanos

RODRIGO CRAVEIRO

 

Centenas de milhares de iranianos — milhões, de acordo com a TV estatal — saíram às ruas de Teerã acompanhando o cortejo fúnebre do general Qasem Soleimani, comandante da Força Quds da Guarda Revolucionária. “Abaixo os Estados Unidos, morte à América” e “Vingança”, gritava a multidão, em meio a cartazes com fotos do militar assassinado pelos EUA logo após desembarcar em Bagdá, na madrugada de sexta-feira. Uma imagem carregada de simbolismo viralizou nos sites e agências de notícias: ao fazer uma prece diante dos caixões de Soleimani e de Abu Mehdi Al-Muhandis (vice-chefe da milícia iraquiana Hashd Al-Shaabi), o aiatolá Ali Khamenei, guia supremo do Irã, foi flagrado derramando lágrimas. O presidente iraniano, Hassan Rouhani, emitiu um alerta ao homólogo norte-americano, Donald Trump: “Nunca ameace a nação iraniana!”. Em Washington, crescem as críticas em relação à legalidade do ataque a drones que matou o general, e a Câmara dos Representantes articula uma resolução para limitar as ações militares autorizadas por Trump. Os deputados pretendem exigir a interrupção das hostilidades militares do governo em relação ao Irã em um prazo de 30 dias.

Morador de Teerã, o estudante iraniano Alireza Khaghani, 19 anos, se uniu ontem aos protestos. “Não foi apenas uma rua ou um bairro; a capital estava cheia de pessoas iradas com o terror imposto pelos EUA”, contou ao Correio. “Quero esclarecer uma coisa: no Irã, ninguém é belicista. Somos honrados e não permitiremos que ninguém nos insulte ou ameace nosso patrimônio. Toda a população exige vingança do governo. Trump disse que atacará 52 alvos no Irã, inclusive sítios culturais. Se ele cometer este erro, nós alvejaremos os EUA em número de versos do Corão (6.536)”, acrescentou.

O também estudante Mohammad Mahdi Ghahraman, 22, aposta que o governo começará a eliminar ativos militares dos EUA e dos aliados no Oriente Médio. “A melhor resposta de cada pessoa que via o general Soleimani como uma grande pessoa é trabalhar para ser como ele. O nosso objetivo será expulsar todos os aspectos das políticas imperialistas e capitalistas da nossa região”, disse à reportagem.

Por sua vez, o programador de computação Omid Bakhtiyari, 26, cobra “vingança por um homem que forneceu segurança ao Irã durante 40 anos”. “Eles (os EUA) destruíram um herói nacional. O Oriente Médio não mais estará a salvo, pois foi ele quem eliminou o Estado Islâmico. Queremos sangue, não apenas de cidadãos comuns, mas também do Exército americano. Além da completa retirada militar do Oriente Médio.” A presença em Teerã de Ismail Haniyeh, líder político do movimento fundamentalista palestino Hamas, causou furor na população. Zeinab, filha de Qasem Soleimani, emocionou a multidão e fez um discurso ácido contra Washington. “Trump, estúpido, símbolo da estupidez e joguete nas mãos do sionismo (Israel), não pense que, com o martírio do meu pai, tudo terminou”, advertiu. O corpo do general será sepultado, hoje, em Kerman (sudeste), depois de uma cerimônia no santuário xiita de Qom.

Ontem, em resposta à decisão do Irã de descartar limites para o enriquecimento de urânio, Trump mandou um aviso às autoridades de Teerã. “O Irã jamais terá uma arma nuclear!”, escreveu, no Twitter, em letras maiúsculas.

 

Gafe

Horas depois de o Parlamento iraquiano aprovar resolução expulsando as forças americanas do país, os EUA cometeram uma gafe. O governo de Donald Trump divulgou um texto segundo o qual as tropas começariam a se retirar do Iraque “em deferência à soberania” da nação. O chefe do Estado-Maior, general Mark Milley, admitiu que o documento era um “rascunho genuíno” que não deveria ter sido publicado. “Não há qualquer decisão de abandonar o Iraque (...). Não adotamos a decisão de sair do Iraque. Ponto”, assegurou, por sua vez, Mark Esper, secretário de Defesa dos EUA. Em entrevista ao Correio, o parlamentar iraquiano Sarkawt Shamsulddin, líder do Movimento Nova Geração, denunciou uma tentativa deliberada do Pentágono de causar confusão. “O anúncio e o desmentido da retirada militar também visaram mostrar que os EUA buscam reduzir as tropas em Bagdá para evitar confrontos com milícias xiitas em áreas mais sensíveis, como a Zona Verde”, afirmou.

Trump ameaçou impor “severas sanções” a Bagdá, em caso de expulsão de seus militares. “Nós temos uma base aérea extraordinariamente cara lá. Custou bilhões de dólares. Não vamos sair a menos que eles nos paguem”, avisou o republicano. O deputado iraquiano entende que sanções contra o Iraque representariam o fim do Iraque. “O meu país sofre uma condição econômica terrível. A nossa economia depende dos EUA e da comunidade internacional. Eu apoio um acordo pacífico e respeitoso com a Casa Branca. Não quero que meu país enfrente os Estados Unidos, mas sou contra os norte-americanos usaram o meu país contra o Irã”, disse  Shamsulddin.

 

TUITADA

“Aqueles que se referem ao número 52 deveriam também se lembrar do número 290. #IR655 Nunca ameace a nação iraniana”

Hassan Rouhani, presidente ao Irã, ao se referir aos 52 supostos alvos escolhidos por Trump e ao citar os 290 mortos no voo 655 da Iran Air, abatido em julho de 1988 por um navio americano enquanto sobrevoava o Golfo.

 

Análise da notícia

Unidade islâmica

Ainda que sobre Qasem Soleimani pesassem acusações de vários crimes, o general, um dos homens mais influentes do Irã, era idolatrado em seu país. O assassinato o elevou ao status de mártir, figura idolatrada em países muçulmanos. A presença de Ismail Haniyeh, líder político do movimento fundamentalista palestino Hamas, no funeral de Soleimani foi simbólica. Indica que a resistência islâmica se unificou no luto e, provavelmente, nos pedidos de vingança.

Ao matarem Soleimani, os EUA reforçaram o antiamericanismo no mundo árabe, enquanto o Irã retornou à posição de pária, ao se desvincular do acordo nuclear assinado em 2015. É pouco provável que Teerã retalie com ações militares diretas. No entanto, aliados na região —  Hezbollah, Hamas e Jihad Islâmica — se sentirão autorizados a cometer atentados. O efeito colateral mais grave está na possibilidade de o Estado Islâmico ganhar força. Soleimani era considerado homem-chave no combate aos jihadistas. (RC)

 

Eu acho...

“Nós somos uma nação muçulmana, xiita. Nós respeitamos nossos mártires. Qasem Soleimani trouxe segurança e alegria, ao impedir que os terroristas do Estado Islâmico entrassem em nosso país. O asssassinato dele foi um gesto estúpido dos EUA. Eles cavaram suas próprias sepulturas e nos tornaram mais unidos do que nunca.”

Mohammad Mahdi Ghahraman, 22 anos, estudante de Teerã

“O assassinato do general Soleimani em território iraquiano foi uma decisão muito perigosa que colocou as relações entre EUA e Iraque em perigo e arriscou o retorno do Estado Islâmico a longo prazo. Não posso falar pelos iranianos, mas espero que o Iraque não pague o preço por essa morte.”

Sarkawt Shamsulddin, parlamentar iraquiano

 

Bastidores

“Dias sombrios” a caminho

Ante uma multidão reunida na Universidade de Teerã, Zeinab Soleimani — filha de Qasem Soleimani — enviou um recado ao presidente norte-americano, Donald Trump: “O martírio de meu pai levará a um auge de resistência e fará os Estados Unidos e Israel tremerem; (…) a morte dele trará dias mais sombrios”.

 

O apelo da Otan

O secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Jens Stoltenberg, pediu ao Irã que evite “mais violência e provocações”, ao concluir uma reunião de embaixadores sobre a crise entre Washington e Teerã. “Em nossa reunião, os aliados pediram moderação e distensão. Um novo conflito não beneficiaria ninguém”, disse.

 

Unesco preocupada

Dois dias depois de Trump publicar no Twitter que selecionou 52 alvos no Irã, “alguns deles de alto nível e muito importantes para a cultura iraniana”, a diretora-geral da Unesco, Audrey Azoulay, se reuniu com o embaixador de Teerã nos EUA e lembrou que Washington assinou acordos internacionais para proteger sítios culturais de ataques.

 

China critica os EUA

O governo da China denunciou o intervencionismo dos Estados Unidos e exortou americanos e iranianos a exercerem a moderação. “A política do poder não é popular nem sustentável. O comportamento militar arriscado dos EUA nos últimos dias vai contra as normas básicas das relações internacionais”, comentou o porta-voz da chancelaria chinesa, Geng Shuang.

 

UE lamenta recuo

O chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, disse que lamenta profundamente o anúncio do Irã sobre elevar os limites do enriquecimento de urânio. “A aplicação completa do acordo nuclear por todos agora é mais importante do que nunca, para a estabilidade regional e a segurança global”, escreveu no Twitter. O Irã anunciou, no domingo, a quinta e última fase do seu plano de redução de compromissos em matéria nuclear, e afirmou que se desliga de qualquer “limite do número de centrífugas” de urânio.